Em 2007 um escândalo tomou conta da imprensa nacional. Imagens da médica anestesiologista Neide Mota Machado citada como dona de uma clínica de aborto em Campo Grande. Ela ficou um mês presa, o fichário médico levou a polícia a pelo menos mil mulheres suspeitas de terem praticado aborto na clínica, e Neide perdeu o direito de exercer a profissão em decisão do Conselho Regional de Medicina.
A médica e outras oito pessoas que trabalhavam com ela estão sendo processadas pela prática de aborto. São elas: o sobrinho Lucas Motas Lorenz e as funcionárias da clínica Simone Aparecida Cantaguessi de Souza, Maria Nelma de Souza, Rosângela de Almeida, Libertina de Jesus Centurion, Daniela Martins Athia, Maria Lúcia Cornellas França e Elaine Maria de Souza.
Da lista de pacientes (que passava de mil) sobraram cerca de 20. Muitas mulheres hoje constituíram família ou estão noivas e agora, por conta da investigação, tiveram que reviver um passado. Em dois casos que o Midiamax apurou, as mulheres já não moram mais em Campo Grande. De uma amostra que reunia milhares de nomes, teria sobrado as ‘pacientes’ que exames [ultrassonografia] comprovaram a gravidez.
Agora ficará a cargo do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) decidir sobre um dos casos mais polêmicos trazidos à tona pela imprensa [reportagem do jornalista Honório Jacometto da TV Morena] e que mexeu com a moral da sociedade, fez a Igreja reagir em defesa de seus dogmas, obrigou a Justiça a se pronunciar, mobilizou entidades feministas e provocou o debate na opinião pública.
O contrassenso mais gritante apontado pelas feministas: os homens, partícipes da gravidez, que teriam incentivado e até pagado os abortos, não foram processados. Alguns figuram como testemunhas. O aborto é crime no Brasil.
Outro lado
O advogado de Neide Mota, Ruy Luiz Falcão Novaes, afirma que a cliente, hoje empresária, é inocente e que teria feito somente curetagens, um procedimento que não é criminoso. Nas imagens mostradas em todo o País aparece a médica explicando como seriam os procedimentos.
No entanto, para o criminalista, o inquérito falho resultou em processo também ‘capenga’, segundo ele. Primeiro: no processo que envolve Neide, o sobrinho e as funcionárias, não estão as mulheres que teriam praticado o aborto. “Para que haja o crime é preciso que estejam presentes quem pratica e quem se submete”, explica.
Segundo: a polícia não encontrou fetos na clínica e sim, arquivo médico, que conforme o criminalista, foram transformados em provas ilegais. “No processo consta busca e apreensão, mas para abri-lo seria necessária ordem judicial. Houve a violação dos arquivos”, explica o advogado.
Terceiro: a falta de pacientes com exames de gravidez.
“O que pesou foi a opinião pública. O processo está capenga. Muitas mulheres foram à clínica da Neide já com sangramento. A Neide foi execrada”, diz.
Já o advogado Miguel Antunes de Miranda Sá, que representa três das funcionárias de Neide Mota, disse ao Midiamax que também já recorreu ao STJ. “Elas eram auxiliares, limpavam a clínica. Não tinham que ser citadas”, afirma.
Rene Siufi, que no caso advoga para a psicóloga Simone, também já apresentou recurso ao Supremo Tribunal de Justiça. Conforme ele, a gravação feita pela equipe de TV foi sem autorização e a acusada nada tem a ver com o crime de aborto, defende ele.
A retirada dos nomes das mulheres do processo da médica parece ter auxiliado a defesa. O caso tramita na 2ª Vara do Tribunal do Júri e nos casos de aborto, segundo a lei brasileira, os acusados passam pelo júri popular.
Aborto
No Brasil, o aborto é definido de seis formas. O consentido é crime previsto por lei com pena de reclusão de 1 a 4 anos; nesse, a gestante não o pratica, permite que outro o faça e ambos são legalmente responsáveis. Há também o autoprovocado, crime previsto por lei com pena de reclusão de 1 a 3 anos, conta com a presença do dolo.
O aborto qualificado é considerado crime já que resulta em lesão ou morte da gestante. Nesse, a pena pode ser duplicada.
A chamada interrupção legal é aquela em que a gravidez causa risco de vida à gestante ou quando é originada por estupro.
O aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante é considerado crime previsto por lei para o agente provocador com pena de reclusão de 3 a 10 anos. Esse pode ser fruto de violência grave ou em caso de menor de 14 anos, alienada ou deficiente mental.
O aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante é também crime previsto por lei. A gestante responde por crime de autoabortamento e o agente causador pode ser punido com pena de reclusão de 1 a 4 anos.
Hipocrisia
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse em reportagem à Agência Brasil não ser pessoalmente favorável ao aborto, mas defende a discussão pública sobre o tema, já que, segundo ele, “existe um problema de saúde pública”. “Fingir que isso não existe é uma atitude hipócrita”.
Segundo ele, em 2006 o SUS (Sistema Único de Saúde) registrou 220 mil curetagens (coleta de restos de tecido do útero). Segundo Temporão, não é possível saber quantos desses procedimentos foram resultado de aborto em situação insegura. Mas o número indica que o assunto tem de ser discutido dentro de uma política de direitos sexuais e reprodutivos.
“Eu não levantei essa questão, eu levantei a questão de política de direitos sexuais e reprodutivos”, disse. Em reunião com o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, o ministro discutiu a possibilidade de legalização do aborto. Segundo Temporão, a legalização possibilitaria a redução do número de mulheres mortas em decorrência de abortos mal-sucedidos. Na ocasião, ele defendeu que seja feito um plebiscito para que a população apresente sua opinião sobre o tema.
Católicos, evangélicos e espíritas fizeram uma manifestação em Fortaleza contra a legalização do aborto em frente a um ginásio onde estava o ministro Temporão. Parlamentares também já haviam criticado o ministro. Já o grupo feminista Católicas pelo Direito de Decidir avalia que é um avanço para o Brasil reconhecer a necessidade de discutir com a população a legalização do aborto.