Um civil que ingressou na Força Aérea como militar após fraudar um processo seletivo para ingresso no Quadro de Sargentos da Aeronáutica não pode responder pelo crime de deserção. Essa foi a decisão da corte do Superior Tribunal Militar (STM) ao julgar um recurso em sentido estrito impetrado pelo Ministério Público Militar (MPM).
O MPM recorreu ao STM na tentativa de desconstituir a decisão do magistrado do juízo da 1ª Auditoria da 2ª CJM (SP), que determinou o arquivamento da Instrução Provisória de Deserção (IPD). O juiz federal da Justiça Militar decidiu pela falta de condição de procedibilidade, em virtude de o investigado não ter mais a condição de militar e pelo fato de terem sido desfeitas todas as relações jurídicas até então praticadas, o que motivou o retorno à sua condição originária de civil.
Os fatos narrados pelo MPM contam que o civil se inscreveu no Processo Seletivo do Quadro de Sargentos Convocados da Aeronáutica (QSCON) em março de 2018, declarando possuir apenas seis meses e 13 dias de serviço militar prestado às Forças Armadas. Dois meses depois, iniciou o estágio de instrução para praças. No entanto, em junho, a Seção de Recrutamento e Mobilização detectou irregularidades na incorporação do dito militar, o que motivou a instauração de sindicância para apurar os fatos.
O procedimento investigatório concluiu que o investigado burlou normas do aviso de convocação do processo seletivo ao qual se submeteu, com objetivo de omitir o tempo de serviço. Tal procedimento tinha como consequência a exclusão do candidato que informasse dados incorretos, incompletos ou inverídicos.
A sindicância também deu origem a um Inquérito Policial Militar (IPM), visto que foram detectados indícios de crime militar previsto no art 312 (falsidade ideológica) do Código Penal Militar (CPM).
Deserção
No mês de julho do ano passado, ainda na condição de militar, ele foi comunicado a respeito do resultado da sindicância e abertura do IPM. Cinco dias depois, o sargento investigado comunicou à Seção de Recrutamento e Mobilização (SERMOB) que havia sido aprovado em 4° lugar em concurso público da prefeitura municipal de Caldas Novas (GO), no cargo de técnico em laboratório. Na ocasião, o acusado apresentou uma relação de candidatos aprovados para nomeação e posse e informou que deveria se apresentar no dia seguinte para assumir o cargo.
Por sua vez, a SERMOB solicitou apoio à assessoria jurídica sobre a viabilidade de solicitar desligamento de militar que esteja respondendo a um IPM. Consequentemente, a assessoria jurídica iniciou um processo de averiguação dos documentos apresentados, tendo descoberto que o acusado falsificou o documento, uma vez que não foi aprovado em concurso algum.
Diante dos fatos comprovados, o então sargento não retornou mais ao expediente, nem sequer justificou sua ausência. No dia seguinte, a falta foi comunicada e, após completar oito dias, foi consumado o crime de deserção. Em 28 de agosto, o acusado foi excluído da Força Aérea e, no mês seguinte, foi publicado o ato que anulou a incorporação dele como sargento.
Em decisão de dezembro de 2018, o juiz militar da 1ª Auditoria da 2ª CJM, após tomar conhecimento da anulação do ato de incorporação, reconheceu a atipicidade da conduta (ausência de crime) do então militar de faltar ao quartel e determinou o trancamento da Instrução Provisória de Deserção (IPD), com o consequente arquivamento do processo. Após ser intimado da decisão, o MPM impetrou recurso junto ao STM.
Em suas razões, a acusação informou que, após a consumação do delito previsto no artigo 187 (deserção) do CPM, foi surpreendido com a anulação da incorporação do sargento pela Administração Militar. Tal fato foi consequência de este ter cometido o crime de falsidade ideológica quando preencheu o formulário para ingressar na Força Aérea.
O MPM afirmou que o arquivamento da IPD encontra-se em contradição com o disposto no artigo 14 do CPM, que proíbe “levantar irregularidade no ato de incorporação para se eximir da aplicação da lei penal militar, ressalvada a hipótese em que o vício já seja conhecido quando for incorporado, que não é o caso dos autos”. A acusação requereu ainda, em seu recurso em sentido estrito, a reforma da decisão de primeiro grau que anulou a incorporação do desertor, a fim de que se determine o regular prosseguimento da IPD.
A Defensoria Pública da União (DPU), em defesa do acusado, declarou que na data da consumação da deserção, ocorrida em 10/8/2018, a Aeronáutica já tinha concluído pela existência de irregularidades na incorporação do militar e determinado sua exclusão. Ressaltou que, por isso, a formalização da anulação da incorporação não passou de exaurimento dos atos administrativos já determinados pela solução da sindicância, solução esta que ocorreu antes do dia em que houve a consumação da deserção.
Por fim, o órgão defensivo afirmou que o caso em exame se enquadra na exceção do artigo 14 do CPM, tendo em vista que o fato era conhecido antes da prática delituosa em exame, motivo pelo qual requereu que o recurso ministerial fosse julgado improcedente, no intuito de se manter a decisão que trancou a IPD.
Condições para configurar deserção
O relator do recurso em sentido estrito no STM, ministro Odilson Sampaio Benzi, explicou que a conduta de desertar está diretamente ligada ao fato do criminoso ostentar a farda. Além disso, esclareceu que existem outras exigências para a deflagração da ação penal militar contra desertor, tais como: a apresentação voluntária ou captura do militar, ser considerado apto em inspeção de saúde, ser reincluído ao serviço ativo, com publicação em boletim, e, por fim, ostentar a condição de militar da ativa. No caso em questão, de acordo com o magistrado, nenhuma dessas condições foi satisfeita.
No caso, conforme consta na decisão do ministro, o acusado burlou logo de início o ato de inscrição para ingressar na FAB, isso antes mesmo de desertar, incorrendo assim no crime de falsidade ideológica. “Posteriormente, ao serem descobertas essas irregularidades, a Administração Militar, por meio de sindicância, não teve dúvidas e anulou o ato de incorporação do sargento, fazendo com que este perdesse o principal requisito para que ele pudesse continuar respondendo a IPD, qual seja, o ‘status’ de militar”, explicou o magistrado.
Atualmente, o civil continua respondendo a ação penal por falsificação de documento e por falsidade ideológica, tendo em vista que a IPD, que também tramitava contra o acusado, foi arquivada pelo juízo de primeiro grau por falta de condição de procedibilidade.
“Ao se anular a incorporação do graduado, este passou a ser tratado como alguém que nunca esteve na caserna. Pelo que se observou no presento feito, o civil, de fato, pode até ter se passado por militar da ativa, mas de direito, isso nunca aconteceu, uma vez que já ingressou na vida militar faltando com a verdade, fraudando documentos, omitindo dados indispensáveis para a triagem e a seleção dos candidatos, conforme exigido no Processo Seletivo do Quadro de Sargentos Convocados”, frisou Odilson Benzi.
Por fim, o ministro entendeu ser atípica a ausência do civil, pois foi decorrente de ato contaminado de vícios insanáveis, eivados de nulidade absoluta. “Por isso, agiu com acerto a meu ver, o juiz federal que em sua decisão decretou nulo o ato de incorporação, devendo seus efeitos retroagirem até a data do nascimento do ato viciado, como se nunca tivesse sido praticado”, finalizou o relator.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 7000597-90.2019.7.00.0000