Ativismo judicial ou cumprimento da Constituição? Mais que uma indagação, esta é uma reflexão do decano da Suprema Corte brasileira, ministro Celso de Mello, sobre o papel constitucional do Supremo Tribunal Federal e as eventuais opiniões de que o Tribunal extrapola suas atribuições ao promover ativismo judicial. O ministro define ativismo judicial como “uma necessidade transitória de o Poder Judiciário suprir omissões do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que são lesivas aos direitos das pessoas em geral ou da comunidade como um todo”.
E o sistema brasileiro possui instrumentos processuais adequados para exercer o controle de constitucionalidade das leis, mesmo que se trate de casos de inconstitucionalidade por omissão, como é o caso do Mandado de Injunção (veja matéria). “São meios processuais idôneos, adequados e permitem ao Judiciário proferir essas decisões, então não há desrespeito nem indevida interferência na esfera dos outros poderes, não há transgressão ao princípio da separação dos poderes”, salientou.
Ao lembrar o julgamento dos mandados de injunção que buscavam o reconhecimento do direito de greve para o funcionalismo público, o ministro Celso de Mello afirmou que o STF foi provocado a se pronunciar sobre o tema. Decidiu, naquele julgamento, reconhecer a falta de regulamentação e aplicar, temporariamente, a lei de greve do setor privado. “O que fez o Supremo Tribunal? Legislou? Não. Editou algum provimento normativo em substituição a uma lei já aprovada pelo Congresso Nacional? Não. O STF exerceu primeiro uma competência que a Constituição lhe deu, qual seja a de julgar mandados de injunção impetrados contra omissões do Congresso Nacional”, ponderou.
Prudência e moderação
Na avaliação do decano, o Supremo Tribunal Federal é chamado a exercer suas atribuições constitucionais de maneira moderada, responsável e prudente. “Isso é ativismo? Não vislumbro, mas se vislumbrar a prática de ativismo, vejo um ativismo judicial moderado, mas tornado necessário pela injustificável omissão do Congresso Nacional. É para isso que existe o Poder Judiciário”, frisou.
Em 2008, o então presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, propôs a criação de uma comissão no Congresso Nacional para tratar dos temas constitucionais que ainda não foram regulamentados. A falta de regulamentação ou de ajustamento de normas sobre determinadas matérias é questionada no Judiciário, que não pode se omitir. O julgamento desses casos, cujas lacunas legislativas existem, “não é uma manifestação de desapreço pelo Congresso Nacional, mas uma tentativa de concretizar a Constituição Federal”, afirmou Mendes naquela ocasião.
Outro exemplo vem do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao reconhecer o direito de adoção de uma criança por um casal homoafetivo, quando a nova Lei Nacional de Adoção não contempla essa possibilidade. Assim, decisões da Suprema Corte sobre fidelidade partidária, progressão de regime prisional para crimes hediondos, nepotismo, uso de algemas e outras relativas à garantia do direito à saúde e à vida, através do sistema gratuito de medicamentos para pessoas carentes são por vezes confundidas com ativismo.
Inércia de jurisdição
Ao ressaltar que o juiz não deve agir de ofício, o ministro Celso de Mello lembrou o princípio da inércia de jurisdição. Um postulado básico, segundo ele, que determina que a Justiça só age quando provocada por alguém interessado e que tenha legitimidade para ajuizar uma ação em defesa de seus direitos.
Foi o que aconteceu quando as minorias do Congresso Nacional recorreram à Suprema Corte em busca do direito de requerer a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). “Uma decisão que não seria possível se fosse um regime monárquico”, disse o ministro Celso de Mello ao observar que a República evolui com a evolução das atribuições conferidas também ao Poder Judiciário. Assim, o ministro afirma que “a Constituição brasileira está sendo permanentemente reescrita nos tribunais”, ao reforçar que o STF é o guardião da Constituição e que essa é uma atribuição que lhe foi conferida pelo poder constituinte.
Última palavra
Nesse sentido, o ministro destacou o papel fundamental do jurista, jornalista, político e grande orador brasileiro Rui Barbosa na transição da Monarquia para a República e, depois, para a consolidação do regime republicano no Brasil. Foi lá, na primeira década da República, que o ministro foi buscar a jurisprudência no sentido de que não há questão interna corporis que se sobreponha ao texto constitucional.
Esse entendimento balizou voto vencedor do ministro Celso de Mello no mandado de segurança impetrado no STF pelo ex-deputado federal e ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. Na ação, ele [Dirceu] questionava o processo disciplinar por quebra de decoro que levou à cassação de seu mandato. “O STF tem hoje o monopólio da última palavra sobre o que é constitucional e que não é constitucional em nosso país”, afirmou.
Ao citar discurso proferido pelo então senador Rui Barbosa, na tribuna parlamentar, em 29 de dezembro de 1914, o ministro afirmou que o STF não é infalível e que pode errar, “mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma coisa que deva ser considerada como erro ou como verdade”.
Para o decano da Suprema Corte brasileira – que na juventude estudou no exterior enquanto morava com uma família conservadora e racista do sul dos Estados Unidos, onde imperava a segregação racial em todas as esferas da sociedade – “se não fosse a atuação da Suprema Corte americana, também acusada de ativismo judicial, o processo de integração racial não teria sido acelerado naquele país”.