por Nelson Edilberto Cerqueira
Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX).
Esse princípio constitucional não foi devidamente atendido pelo legislador ordinário, quanto da edição da Lei 9714/98, que alterou, dentre outros dispositivos do Código Penal, o concernente à conversão da pena restritiva de liberdade em restritiva de direitos.
O Artigo 44 do Código Penal previa a possibilidade de conversão de pena restritiva de liberdade em restritiva de direitos quando a pena fixada ao condenado não fosse igual ou superior a um ano. A inovação legislativa estendeu o benefício da conversão para os casos em que a pena aplicada seja igual ou inferior a quatro anos.
Pacífico na doutrina e jurisprudência que o juízo está obrigado a promover a conversão, desde que presentes os requisitos autorizadores.
Em regra, portanto, quem cometer delito cujo tipo penal estabeleça pena máxima de quatro anos de restrição de liberdade, já pode vislumbrar que não será recolhido à prisão.
A privação da liberdade, enquanto não proferido o julgamento, somente será admissível em situações anômalas (notadamente quando presentes os requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, ou nos dispositivos que autorizem os demais tipos de prisão provisória).
A contra senso, quando o indivíduo cometer um delito, mas se portar com retidão perante a sociedade e mantiver a lealdade processual, terá garantido o direito de não ser recolhido a cárcere, mesmo se a final da lide vier a ser condenado.
Em outras palavras, a restrição da liberdade somente é tolerada para pena superior a quatro anos de reclusão. Excepciona-se a regra somente quando o delito implicar em violência ou grave ameaça a pessoa.
A regra é válida tanto para o curso da persecução criminal, quanto para execução da pena.
Ocorre que a opção feita pelo legislador não foi seguida por todas as alterações necessárias, a fim de garantir a harmonia jurídica e plena aplicabilidade do dispositivo constitucional. Vejamos: Antes da condenação, o autor de um delito somente será recolhido à prisão caso preso em flagrante de delito, ou por determinação judicial.
No segundo caso, ao apreciar pedido de prisão preventiva (não estamos considerando a prisão temporária, que tem pressupostos e objetivos diversos) o Juízo levará em conta, dentre os pressupostos autorizadores, a pena máxima que poderá ser aplicada.
Se presente, no momento da apreciação do pedido, pelo menos um dos pressupostos autorizadores da restrição provisória da liberdade, é porque já se pode vislumbrar que também poderão não estar presentes todos os requisitos autorizadores da conversão da pena restritiva de liberdade em restritiva de direitos; justificando o decreto provisório de prisão.
Do contrário, o pleito de prisão provisória será negado e o investigado/réu poderá responder em liberdade. Assim, quanto à prisão provisória decretada pelo Juízo (em sentido largo, e com exceção da prisão temporária), verificamos harmonia jurídica.
No entanto, a mesma harmonia não é verificada quando da prisão em flagrante de delito (uma das modalidades de recolhimento provisório).
De fato, o recolhimento a cárcere, decorrente de prisão em flagrante é fruto de juízo discricionário formulado pela autoridade policial (§ 1º do artigo 304 do CPP), e posteriormente submetido a controle do Judiciário (quando da comunicação da prisão).
Ainda que o Juízo entenda descabida a prisão provisória, e determine que se coloque o preso em liberdade, para nessa condição responder à persecução penal, terá o cidadão permanecido recluso por certo período de tempo. Para a sociedade será mais um caso a confirmar o refrão: “A polícia prende e o Judiciário solta”.
Diante de situação flagrancial que lhe é apresentada, cabe à autoridade policial verificar se a materialidade está demonstrada; bem como, se os demais indícios que lhe são apresentados ligam o apontado autor ao delito cometido.
Verificada materialidade e autoria, cabe à autoridade policial promover a lavratura do auto de prisão em flagrante, com todas as formalidades que lhe são peculiares.
Dentre as providências decorrentes da prisão em flagrante, cabe decidir sobre o imediato encarceramento do conduzido, fixação de fiança ou mesmo a liberação mediante compromisso de comparecimento a Juízo (no caso dos crimes de menor potencial ofensivo) – § 1º do artigo 304 do CPP.
Seu juízo discricionário se aterá aos seguintes limites:
a) Tratando-se de delito de menor potencial ofensivo, e firmando o preso o compromisso de comparecer em Juízo, será imediatamente colocado em liberdade (artigo 61 da Lei 9099/95).
b) Tratando-se de apenamento com detenção (qualquer que seja o máximo de pena cominada), poderá a autoridade policial fixar fiança, colocando em liberdade o flagranciado — artigo 322 do CPP.
Observa-se que a autoridade policial não está obrigada a colocar o preso em liberdade pela simples ocorrência das regras acima explicitadas. E é exatamente nisso que consiste seu juízo discricionário.
Poderá determinar o recolhimento do preso que, embora os tipos prevejam as penas acima mencionadas, reste patente que se colocado em liberdade, represente perigo à sociedade (segurança da sociedade ou da futura ação penal).
Como se vê, o Legislador conferiu à autoridade policial juízo discricionário quanto ao recolhimento de pessoas, presas em situação de flagrante, e cuja pena máxima aplicável esteja dentro dos padrões acima referidos (dois anos de restrição de liberdade ou detenção, independentemente do tempo máximo previsto).
Ato contínuo, cabe ao Juízo, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou do preso (ou qualquer do povo, em razão de hábeas corpus), decidir sobre a manutenção da prisão, ou imediata liberação do preso.
Apenas para lembrar, nos casos previstos nos incisos I e II do artigo 321 do CPP não cabe qualquer juízo de valor, mas a imediata liberação do preso.
E é justamente aqui que reside a falha legislativa, qual seja: quando da edição da Lei 9714/98, também deveria ser modificado o artigo 322 do Código de Processo Penal.
A mensagem legislativa foi muito clara: não é tolerável o recolhimento de pessoas condenadas a pena igual ou inferior a quatro anos de reclusão, e cujo delito não foi cometido com violência ou grave ameaça à pessoa.
Mas se não é tolerável o encarceramento decorrente de condenação, quanto mais o recolhimento em razão de prisão em flagrante, uma das modalidades de prisão provisória.
Na primeira hipótese há uma decisão, baseada em todas as provas colhidas no correr da instrução criminal. Na segunda, decisão baseadas em elementos colhidos na imediata seqüência dos fatos, que podem ser infirmados no correr da instrução criminal. Em outras palavras, poderíamos dizer que indícios implicam em prisão, mas a “certeza” resultante da condenação impedem o recolhimento ao cárcere.
O critério adotado para fixar os limites da discricionariedade da autoridade policial é o mesmo: tempo de prisão máxima prevista no tipo penal em confronto com o resultado de futura ação penal. Por deixar de observar esse critério é que o legislador promoveu o descompasso entre a redação do artigo 44 do CP e a do artigo 322 do CPP.
Tomemos como primeiro exemplo o disposto no artigo 334 do Código Penal, cuja pena máxima é de quatro anos de reclusão. A ocorrência do delito de descaminho pressupõe inexistência de grave ameaça ou violência contra pessoa.
Ainda que o Juízo aplique pena máxima, já se tem por certo que a pena será convertida em restritiva de direitos. Por qual razão impor restrição de liberdade, ainda, que por período exíguo o flagranciado?
O recolhimento em razão do flagrante somente se justificaria se presentes elementos (demonstrados objetivamente pela autoridade policial, em sua decisão de recolhimento a cárcere) indicativos de que em liberdade colocaria em risco a sociedade; o que se sujeitaria a posterior análise judicial.
A fixação de fiança, como regra, estaria em consonância com o espírito da norma, transcrita no artigo 322 do Código de Processo penal, e com a inovação legislativa de 1998, porque lastreada na mesma razão (a pena restritiva de direitos é suficiente para prevenção e repressão).
Tomemos o furto simples como segundo exemplo, cuja pena em abstrato oscila entre um e quatro anos de reclusão.
Imaginemos que o indivíduo seja flagrado logo após subtrair um litro de bebida, cujo valor seja fixado em R$ 30.
Apresentado o flagrante à autoridade policial, e após recolher as provas, não lhe restará alternativa, senão o encarceramento do preso, ainda que não esteja presente qualquer outro requisito que indique a necessidade do recolhimento; só pelo fato de que ao delito é cominada pena de reclusão.
O próprio legislador que exige tal atitude da autoridade policial prevê que ao autor, se condenado, não se aplique pena de prisão, mas multa (§ 2º do artigo 155 do CP).
Não se perca de vista, ainda, que o apenamento mínimo dá ensejo, ainda, à proposta de suspensão do processo (artigo 89 da Lei 9099/95).
Tal incoerência dá ensejo a variadas reações, tanto pela sociedade, quanto pelo próprio Poder Judiciário, sendo uma delas a classificação do fato como “insignificante” para a órbita criminal.
Cremos que uma das razões práticas para o posicionamento judicial (ainda que não explicitado) é que o simples recolhimento, ainda que por um único dia, já foi mais que suficiente para repressão ao delito. E o pior, não há critério sobre qual o valor do bem subtraído que justifique a aplicação do princípio; havendo decisões que assim considerem quando o prejuízo alcance até um salário mínimo.
Do ponto de vista do autor do delito, se foi recolhido a cárcere por fato tido por insignificante (ou seja, não criminoso), tem direito a se ver ressarcido pelo Estado.
Ainda que seja considerada imoral tal ação indenizatória, é juridicamente possível. A questão que se coloca é a seguinte: poderá o pedido ser negado pelo mesmo Estado Juiz alegando ser imoral o pleito, se este mesmo Estado Juiz disse não ser crime o fato motivador do recolhimento ao cárcere?
Não se perca de vista, ainda, que a legislação pátria adota o princípio da responsabilidade objetiva do Estado.
Em suma, o mesmo Estado determina a prisão e depois a declaração de que o fato não é criminoso.
Temos, assim, ser urgente a necessidade de alteração do disposto no artigo 322 do CPP, ganhando dicção similar à disposta no artigo 44, inciso I, do CP (“A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com pena máxima privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo “).
Casos repetidamente noticiados pela imprensa, em que se aplica o princípio da insignificância poderiam ser resolvidos com adoção do disposto no artigo 89 da Lei 9099/95; inclusive com ressarcimento integral dos prejuízos causados ao lesado, como condição para extinção da punibilidade.
O princípio da insignificância, em conseqüência, se restringiria aos casos clássicos (palito de fósforo, alfinete, um único parafuso).
Revista Consultor Jurídico