por Maurício Corrêa
Com os desdobramentos da Operação Satiagraha, o clima instaurado contra o presidente do Supremo Tribunal Federal subiu a temperaturas abrasadoras. Com o passar dos dias, entretanto, o termômetro baixou. Os fatos veiculados em torno da mencionada operação apresentam os envolvidos como autores de grossa rapinagem praticada contra os cofres públicos. Por isso, os dois Habeas Corpus deferidos no STF, com a conseqüente liberação dos presos, tenham provocado tantas frustrações.
É normal que, com a indução da existência dos crimes cometidos pelos acusados, a soltura deles tenha sido estimada como favor incabível, a incutir na cabeça das pessoas a comprovação do ditado popular de que a polícia prende e o juiz solta. Tal inferência ainda mais se robustece na medida em que, num país como o nosso, a impunidade campeia com freqüência contumaz.
Exibidas as cenas das prisões com imagens que mostravam montes de dinheiro e pacotes de documentos em profusão espalhados sobre mesas, é compreensível que o desejo gerado na maioria da sociedade fosse de que os acusados continuassem trancafiados. Sem observância das cautelas legais nos decretos de prisão, que reclamam fundamentação válida, entendeu o ministro Gilmar Mendes em conceder as ordens impetradas. A onda desencadeada por esses atos gerou indignação e revolta. Editoriais e comentários no rádio, na televisão, na imprensa escrita e na mídia eletrônica mais pareciam clamor geral pela insensatez consumada.
Entre as qualidades de um magistrado avulta-se a da independência. O juiz que se curva à vontade de mandões rompe a dignidade do múnus que exerce, despe-se da isenção que o baliza, conspurca a majestade da toga que enverga e faz da ética de julgar jogo de perfídia. O único bem a que deve obediência é a consciência. Ao distribuir Justiça o faz em nome do Estado. É o que a doutrina chama de o Estado-juiz. Nas decisões que profere na condição de juiz de primeiro grau, em eventual recurso interposto, só o tribunal, que a ele se sobrepõe, tem competência para modificá-las.
Se tais decisões transitam em julgado, como se diz no jargão forense, tollitur questio, está encerrada a questão. Quem ganhou a causa é titular definitivo do direito, restando-lhe dele dispor e usufruir. Daí a afirmação de que o juiz ao exercer jurisdição sobre determinada pretensão personifica o Estado nele encarnado para dirimir as controvérsias sub judice.
Na estrutura constitucional de composição do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal se coloca como a mais alta corte de Justiça do país. Não se pode dizer que, à semelhança das Forças Armadas, o princípio da hierarquia nele seja absoluto. A hierarquia no Poder Judiciário é aquela em que o magistrado, na prestação jurisdicional, condiciona-se, se houver recurso, ao que vier a decidir a instância superior. Proferido veredicto pelo STF, exaure-se a instância recursal e a coisa objeto da demanda transita em julgado.
Além dos recursos que examina por violação constitucional, uma vez que essa é a única base para apreciá-los, compete-lhe julgar matérias de competência originária. Para assegurar o direito de ir e vir dos cidadãos é ainda a corte, em última instância, competente para julgar pedidos de habeas corpus. Isso quer dizer que, em tese, toda questão criminal em que a liberdade individual esteja em risco pode o STF atuar.
O ministro Gilmar Mendes ao oficiar nos dois Habeas Corpus relacionados com a Operação Satiagraha o fez com respaldo constitucional. Ao deferi-los entendeu que, em ambos, não havia fundamento suficiente para manter os pacientes presos. Nada demais para quem detém competência legal para julgá-los. Os protestos levantados contra ele não procedem. Pelo contrário, impõe-se reconhecer a coragem e independência com que operou diante de caso de tamanha repercussão social. Resta à Polícia Federal e ao juiz que decretou as prisões cumprir a ordem. Ponto final.
Grave é, no contexto desse caso, o que se verificou com telefonema de certo advogado para o chefe de gabinete do presidente da República. Trocado em miúdo, o que fez esse servidor foi intermediar pedido do advogado, seu amigo, para saber o que existia contra seu cliente em apuração na Abin.
O privilégio dessa amizade, se bem observado o Código Penal, é tráfico de influência, traduzido em vantagem obtida para outrem, valendo-se o servidor de função pública. Da mesma forma, a nebulosa saída do delegado que preside a operação é ato administrativo legítimo de seus superiores. Embora a PF esteja na jurisdição federal, é estranho que o presidente exija, como instância recursal de ofício, o retorno do delgado ao posto. Tolice pura.
O ministro Gilmar Mendes não merece as censuras que lhe foram dirigidas. Agiu como juiz que não se submete à vontade de abelhudos poderosos. Portou-se com independência e isenção. Não foi covarde nem submisso. Se o presidente do Opportunity cometeu crimes, que pague por eles. Desde que cumprida a Constituição do país.
(Artigo publicado no jornal Correio Brasiliense neste domingo 20/7).
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