Tratados que versam sobre direitos humanos

É sabido que, como decorrência da globalização, onde o econômico sem fronteiras predomina na ordem mundial contemporânea, há uma tendência irreversível de constitucionalização pelos diferentes Estados nacionais de princípios e regras de direito internacional. A universalização de problemas diversos decorrentes do mundo globalizado está a exigir especial atenção à normatização internacional na formulação da ordem constitucional nos dias atuais.

Sobre o assunto, afirma José Joaquim Gomes Canotilho:

“A globalização internacional dos problemas (‘direitos humanos’, ‘proteção de recursos’, ‘ambiente’) aí está a demonstrar que, se a ‘constituição jurídica do centro estadual’, territorialmente delimitado, continua a ser uma carta de identidade política e cultural de uma mediação normativa necessária de estruturas básicas de justiça de um Estado-Nação, cada vez mais ela se deve articular com outros direitos, mais ou menos vinculantes e preceptivos (hard law), ou mais ou menos flexíveis (soft law), progressivamente forjados por novas ‘unidades políticas’ (‘cidade mundo’, Europa comunitária’, ‘casa européia’, ‘unidade africana’)”. [01]

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2 A incorporação dos direitos e garantias individuais decorrentes de tratados pela Constituição Federal

A nossa Constituição Federal de 1988 seguiu essa tendência de caminhar em direção a um sistema de cooperação com outros povos e harmonização de seus textos com os princípios e regras de direito internacional, incorporando normas transnacionais, como se vê do art. 4º, IX e parágrafo único, bem como do art. 5º, § 2º, da CF:

“Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

……………………………..

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Por sua vez, a Constituição de 1988, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, veio a dispor em seu art. 5º, § 2º:

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

A parte final do dispositivo supratranscrito inovou em relação ao que constava na ordem constitucional antecedente, que dispunha no capítulo dos direitos e garantias individuais, art. 153, § 36:

“A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”.

A diferença de redações salta aos olhos. Dúvida não pode haver de que a parte final daquele § 2º procedeu à incorporação, ao rol de direitos e deveres individuais e coletivos previstos no caput do art. 5º, dos direitos e garantias decorrentes de tratados e convenções internacionais de que o nosso país seja parte. Atribuiu a esses direitos e garantias a mesmíssima hierarquia de norma constitucional. Os direitos e garantias fundamentais decorrentes de tratados são, portanto, igualmente protegidos pela cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).

É verdade que se trata de preceito constitucional de natureza aberta, a não permitir vislumbrar, de pronto, quais seriam esses direitos e garantias fundamentais.

Porém, é certo que a unanimidade dos constitucionalistas reconhece a existência de três grupos de direitos individuais albergados pela Constituição: (a) direitos individuais expressos, elencados nos diferentes incisos do art. 5º; (b) direitos individuais implícitos, que são aqueles subentendidos por decorrerem do regime e dos princípios adotados pela Constituição; e (c) direitos individuais que derivam de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

Portanto, esse caráter aberto do último grupo de direitos individuais em nada afeta a sua natureza de garantia constitucional protegida por cláusula pétrea. À medida em que o Brasil for celebrando tratados versando sobre direitos e garantias fundamentais, uma vez aprovados pela forma prevista na Constituição, aqueles direitos vão se incorporando ao rol do art. 5º como se aí transcritos estivessem.

Oportuna a lição de Canotilho, nesse particular:

“O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que se densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco da constitucionalidade’ a princípios não escritos, mas ainda reconduzíveis ao programa normativo-consttucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas” [02].

Contudo, a doutrina majoritária orientou-se no sentido de que os tratados internacionais têm a mesma hierarquia de lei ordinária geral, com a conseqüente aplicação da regra de direito intertemporal, segundo a qual lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível.

Essa teoria da natureza infraconstitucional dos tratados, para alguns autores, é extraída da interpretação do art. 102, III, “b”, da CF, que confere ao STF a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

Assevera Flávia Piovesan que, “à luz deste dispositivo, uma tendência da doutrina brasileira passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável o princípio ‘lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível’”. [03]

Há duplo equívoco nessa linha de raciocínio.

Primeiramente, a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar definitivamente a constitucionalidade de leis e de tratados decorre da sua condição de guardião da Constituição. Se o Congresso Nacional, inadvertidamente, aprovar um tratado inconstitucional, é dever do Supremo Tribunal Federal, quando provocado, declarar a sua inconstitucionalidade ou, ao reverso, julgá-lo constitucional, quando for o caso.

Como se pode notar da precisa lição de Oscar Tenório, o conflito de normas se limita entre as normas constitucionais e as de tratados:

“Pela natureza do sistema constitucional brasileiro, o tratado perde sua força quando colide com a Constituição Federal. Todavia, modernas correntes doutrinárias sustentam a supremacia dos textos convencionais. Numa colisão entre o texto da Constituição e o tratado, dá-se preferência a este. As regras convencionais anteriores a uma Constituição continuam em vigor, ainda que o Poder Constituinte tenha adotado princípios incompatíveis com os tratados em vigor. E vão além, afirmando que tratados celebrados posteriormente à Constituição são válidos, ainda que suas regras colidam com o texto constitucional.

São os adeptos da supremacia do direito internacional que defendem esses princípios. Campo de pura doutrina, em contraste com o direito positivo interno. Tratados inconstitucionais no Brasil, sendo a inconstitucionalidade decretada pelo Judiciário, não obrigam. E o Estado contratante estrangeiro não encontrará, na órbita jurídica brasileira, meios coativos para o cumprimento de direito convencional inconstitucional. A matéria cai no âmbito da responsabilidade internacional, sujeita às medidas e aos remédios que o direito das gentes possuem.” [04]

Sabemos que a nossa Corte Suprema jamais aceitaria a tese da supremacia dos dispositivos de tratados em relação aos textos constitucionais.

Em segundo lugar, não há que se falar em aplicar aos tratados as regras de direito intertemporal, porque eles são sempre atos de governo, não uma lei em sentido estrito, tanto é que o Congresso Nacional não legisla, limitando-se a aprová-los por meio de Decreto Legislativo (art. 49, I c.c. art. 59, VI, da CF).

De fato, dispõe a Carta Política:

“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”

Ora, o verbo “resolver” é incompatível com o ato de legislar. Aprovar o

tratado é assunto que se insere no âmbito de exclusiva competência do Congresso Nacional. E, ao aprovar o tratado, por meio de Decreto Legislativo, o Congresso não legisla em caráter de norma geral e abstrata, limitando-se a editar normas individuais de natureza concreta. Aliás, quando o texto constitucional prescreveu que compete ao Congresso Nacional “resolver” definitivamente sobre tratados, a toda evidência, quis o legislador constituinte que a vontade do Estado, parcialmente expressada pelo Poder Executivo, fosse completada com a final manifestação do Poder Legislativo, dentro do princípio da independência e harmonia dos Poderes, que representa um sistema de freios e contrapesos, de sorte que nenhum dos Poderes pode fazer o que bem entender sem que os demais Poderes intervenham. Afinal, assinar tratado é o mesmo que assinar contrato. Envolve manifestação volitiva do Estado, expressa pelos Poderes Executivo e Legislativo.

Por isso, diz com habitual propriedade Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

” (…..). Ora, sobre as matérias de competência exclusiva do Congresso arroladas na atual Constituição pelo art. 49, não cabe a normatividade abstrata característica de lei propriamente dita.

De fato, os itens do art. 49 atribuem ao Congresso o ‘resolver’, o ‘autorizar’ ou ‘permitir’ ou ‘aprovar’ ou ‘sustar’, o ‘mudar’, o ‘fixar’, o ‘julgar’, o ‘deliberar’, e só a menção desses verbos já mostra que se está em face de questões sobre as quais o constituinte quis deixar a decisão última ao Congresso, especialmente como forma de fiscalização do Poder Executivo. Somente os itens VII e VIII sobre a fixação da remuneração, respectivamente, de Deputados e Senadores e do Presidente e Vice-Presidente da República é que dão azo à edição de normas gerais. As outras individuais não é matéria considerada como pertencente ao ‘processo legislativo’, nem ao ‘processo normativo’, em sentido estrito” [05].

Inaplicável, portanto, o disposto no art. 2º e parágrafos da Lei de Introdução ao Código Civil, Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

O tratado vigora até que seja extinto por uma das seguintes hipóteses:

a)execução integral;

b)expiração do prazo previsto;

c)verificação de uma condição resolutória;

d)acordo mútuo;

e)denúncia (renúncia unilateral);

f)impossibilidade de execução.

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3 O § 3º do art. 5º da Constituição Federal

A posição majoritária da doutrina e da jurisprudência em torno da hierarquia dos tratados – equiparando-os à lei ordinária genérica na linha do decidido no RE nº 200.385-RS [06], onde restou proclamada a prevalência do diploma legal específico (o Decreto Lei nº 911/69 [07] sobre o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas) –, ao que pensamos, levou o Congresso Nacional a promulgar a EC nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentando o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos:

“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Conferiu-se o status de emenda constitucional aos tratados que versarem sobre direitos humanos, desde que aprovados por meio do inusitado processo legislativo próprio para aprovação de emendas como se tratados fossem lei em sentido estrito.

Se a intenção foi boa, o resultado não é dos melhores. Causa dúvidas, confusões e insegurança jurídica pelas diversas interpretações que provoca.

De tudo o que foi exposto até agora, ficou claro que, por força do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, os direitos e garantias decorrentes de tratados de que faça parte o Brasil constituem direitos e garantias individuais assegurados no nível de cláusula pétrea, incorporados que ficam ao texto constitucional. Por força de dispositivo originário da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais gozam da mesma hierarquia que norma constitucional.

O § 3º do art. 5º, acrescido pela EC 45/04, permite várias leituras dentre as quais:

a)os tratados doravante deverão ser aprovados em dois turnos e por três quintos de votos nas duas Casas Legislativas;

b)somente os tratados, que versam sobre direitos humanos, submetem-se ao “processo legislativo” previsto na letra “a”;

c)somente os tratados que versam sobre direitos humanos equivalem às emendas constitucionais;

d)demais tratados, mesmo que aprovados com observância do “processo legislativo” previsto na letra “a” teriam a hierarquia de lei ordinária geral, como vinha sendo proclamada pela jurisprudência e parte da doutrina;

e)os tratados e convenções internacionais aprovadas pela forma prevista na Constituição Federal têm a mesma hierarquia de norma constitucional.

De todas as alternativas, a que mais se harmoniza com o sistema constitucional como um todo e com a doutrina de cultores do Direito Internacional Público é a da letra “e”.

De fato, inegável que o § 2º do art. 5º bem como o inciso IX do art. 4º da Constituição Federal resultaram da globalização dos problemas concernentes aos direitos humanos, à proteção do meio ambiente, ao econômico sem fronteiras etc.

É irreversível a tendência dos Estados nacionais de incorporar em seus Estatutos Magnos os princípios e regras de direito internacional por meio de tratados que firmam voluntariamente. A Constituição continua representando a emanação da soberania do Estado parte, mesmo porque só podem ceder e fazer concessões recíprocas os que detêm soberania. A soberania, como um dogma político intangível, não mais existe neste mundo globalizado. Os países que compõem a União Européia, por exemplo, estruturaram o Direito Comunitário, onde as constituições dos países-membros funcionam como legislação interna.

Assim sendo, o § 3º sob comento, na verdade, ao contrário do que muitos pensam, configura uma exceção à regra normal de aprovação de tratados e convenções internacionais ao exigir o inusitado “processo legislativo”, para aprovação em dois turnos e obtenção de três quintos dos votos válidos nas duas Casas do Congresso Nacional, para merecer o status de emenda constitucional. Portanto, não têm a mesma hierarquia de norma constitucional originária protegida por cláusula pétrea. Uma coisa é a mens legislatores, outra coisa diversa é a mens legis, que se extrai do exame do ordenamento jurídico global e de conformidade com as modernas teorias do Direito Internacional Público.

Por oportuno, esclareça-se que não há que se cogitar de aplicação do novo “processo legislativo” para tratados que não versem sobre direitos humanos e nem há como negar aos tratados celebrados anteriormente à EC nº 45/04 a mesma hierarquia de norma constitucional, pois, isto está expresso no § 2º do art. 5º da CF. A EC nº 45/04, se bem analisada, representa um verdadeiro tiro no pé.

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4 Considerações finais

A EC nº 45/04 traz todas essas inconveniências pelas diversas interpretações que pode provocar.

Mas uma coisa é certa: a Corte Suprema não mais poderá aplicar o Decreto-Lei nº 911/69, que cuida da prisão do depositário infiel, em face do art. 7º, cláusula sétima, do Pacto de São José da Costa Rica, agora, guindado à hierarquia de emenda constitucional, na dicção do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.

Como se sabe, esse tratado foi firmado em 22 de novembro de 1969 e aprovado por meio de Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio de 1992, sendo promulgado pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, portanto, na vigência da Constituição Federal de 1988.

Dessa forma, se afastada a natureza de norma constitucional que o Pacto de São José da Costa Rica ostenta por força do § 2º do at. 5º da Constituição Federal, ao menos deve ser-lhe conferido o status de uma emenda constitucional.

Se mantido o posicionamento da Corte Suprema pela aplicação do Decreto Lei nº 911/69, em face do que dispõe o art. 5º, LXVII da CF, que excetua da proibição de prisão por dívida civil o infiel depositário, há de buscar novos fundamentos para assim decidir, não servindo como paradigmas os utilizados no HC nº 72.131, Rel. Min. Marco Aurélio, e nos RREE ns. 200.385-RS e 344.458-RS, ambos de relatoria do Min. Moreira Alves.

Saber se a parte final do inciso LXVII do art. 5º da CF restou revogado ou não pela EC nº 45/04 é outra questão a ser dirimida pela doutrina e jurisprudência.

Há uma tendência do Supremo Tribunal Federal na revisão da tese que admite a prisão do depositário infiel, conforme sete votos já proferidos no RE nº 466.343-SP, Rel. Min. Cezar Peluso.

No nosso modesto entender, aquela parte final não mais vigora a partir da EC nº 45/04, que buscou harmonizar nossa Carta Política com os princípios e regras internacionais de proteção aos direitos humanos.

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Notas

01 Direito constitucional, 6ª ed, Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 18.

02 Ob. cit., p. 982.

03 Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Max Limonad, 4ª ed, são Paulo: Max Limonad, 2000, p. 81.

04 Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 86.

05 Curso de direito constitucional, 30ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 214.

06 RE nº 200.385-RS, Rel. Min. Moreira Alves, J. em 2-12-97, DJU de 6-2-98, p.38.

07 Permite a prisão de depositário infiel.

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Kiyoshi Harada
jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP

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