Um par de algemas – Debate sobre direitos individuais de acusados é mais amplo

Editorial da Folha de S.Paulo

Foi unânime a decisão do Supremo Tribunal Federal limitando a circunstâncias de “evidente perigo de fuga ou agressão” o emprego de algemas pelas autoridades. Diferentemente do que possa parecer à primeira vista, o julgamento não foi desencadeado pelas espetaculares detenções dos investigados na Operação Satiagraha. Foi um pedreiro de Laranjal Paulista, condenado por homicídio em 2005, o autor da ação.

Seus advogados argumentavam que o fato de estar algemado diante do júri reforçava a impressão de sua culpabilidade. Determinando a realização de novo julgamento nesse caso, os ministros do STF reafirmaram a idéia de que todo réu é inocente até prova em contrário.

A menos que se queira viver sob um regime de permanente arbítrio e delação totalitária, o princípio não tem como ser contestado —embora, nos últimos tempos, mostre-se importante relembrá-lo.Se o tema ganhou repercussão, isso se deve menos ao caso específico examinado no STF do que à série de críticas suscitadas pelo espalhafato policial na repressão aos crimes do colarinho branco.

Nesse contexto, os ministros decidiram editar uma súmula, ainda a ser votada em plenário, para que a orientação quanto ao uso de algemas seja seguida nas instâncias judiciais inferiores. Tratada com louvável sensatez no plano jurídico, a questão das algemas assumiu, entretanto, um destaque desproporcional nas atenções da opinião pública se levarmos em conta uma realidade muito mais vasta, e que cabe classificar de hedionda, no que diz respeito aos direitos dos acusados e dos presos no país.

Nem sequer é preciso mencionar o cotidiano de intimidações policiais vivido pelos habitantes das periferias, onde a barbárie do crime organizado é a maior, mas não a única, violência contra os direitos do cidadão.

No plano mais circunscrito da Justiça formal, é certamente incalculável o número dos réus que, sem assistência jurídica adequada, esperam presos um julgamento a que teriam direito de aguardar em liberdade.

Ainda mais grave é o caso daqueles que, com penas já cumpridas, permanecem encarcerados pela ineficiência e pela complicação do sistema judicial.Para corrigir este abuso -bem mais cruel e revoltante do que o uso das algemas- noticia-se, já não sem tempo, a iniciativa de criar mutirões organizados pelo Conselho Nacional de Justiça, com funcionamento previsto a partir de setembro.

Não se trata, evidentemente, de confundir a defesa dos direitos individuais com qualquer tipo de benevolência com o crime. A impunidade dos delinqüentes e o abuso das autoridades são faces da mesma moeda.

Qualquer que seja a classe a que pertençam, a ineficiência do sistema ajuda os culpados e prejudica os inocentes. Lentidão e desigualdade manietam as ações da Justiça no país; um par de algemas invisível, na verdade, do qual não há súmulas capazes de libertá-la a curto prazo.

[Editorial publicado na Folha de S.Paulo, deste domingo, 10 de agosto].

Revista Consultor Jurídico

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Um par de algemas – Debate sobre direitos individuais de acusados é mais amplo

Editorial da Folha de S.Paulo

Foi unânime a decisão do Supremo Tribunal Federal limitando a circunstâncias de “evidente perigo de fuga ou agressão” o emprego de algemas pelas autoridades. Diferentemente do que possa parecer à primeira vista, o julgamento não foi desencadeado pelas espetaculares detenções dos investigados na Operação Satiagraha. Foi um pedreiro de Laranjal Paulista, condenado por homicídio em 2005, o autor da ação.

Seus advogados argumentavam que o fato de estar algemado diante do júri reforçava a impressão de sua culpabilidade. Determinando a realização de novo julgamento nesse caso, os ministros do STF reafirmaram a idéia de que todo réu é inocente até prova em contrário.

A menos que se queira viver sob um regime de permanente arbítrio e delação totalitária, o princípio não tem como ser contestado —embora, nos últimos tempos, mostre-se importante relembrá-lo.Se o tema ganhou repercussão, isso se deve menos ao caso específico examinado no STF do que à série de críticas suscitadas pelo espalhafato policial na repressão aos crimes do colarinho branco.

Nesse contexto, os ministros decidiram editar uma súmula, ainda a ser votada em plenário, para que a orientação quanto ao uso de algemas seja seguida nas instâncias judiciais inferiores. Tratada com louvável sensatez no plano jurídico, a questão das algemas assumiu, entretanto, um destaque desproporcional nas atenções da opinião pública se levarmos em conta uma realidade muito mais vasta, e que cabe classificar de hedionda, no que diz respeito aos direitos dos acusados e dos presos no país.

Nem sequer é preciso mencionar o cotidiano de intimidações policiais vivido pelos habitantes das periferias, onde a barbárie do crime organizado é a maior, mas não a única, violência contra os direitos do cidadão.

No plano mais circunscrito da Justiça formal, é certamente incalculável o número dos réus que, sem assistência jurídica adequada, esperam presos um julgamento a que teriam direito de aguardar em liberdade.

Ainda mais grave é o caso daqueles que, com penas já cumpridas, permanecem encarcerados pela ineficiência e pela complicação do sistema judicial.Para corrigir este abuso -bem mais cruel e revoltante do que o uso das algemas- noticia-se, já não sem tempo, a iniciativa de criar mutirões organizados pelo Conselho Nacional de Justiça, com funcionamento previsto a partir de setembro.

Não se trata, evidentemente, de confundir a defesa dos direitos individuais com qualquer tipo de benevolência com o crime. A impunidade dos delinqüentes e o abuso das autoridades são faces da mesma moeda.

Qualquer que seja a classe a que pertençam, a ineficiência do sistema ajuda os culpados e prejudica os inocentes. Lentidão e desigualdade manietam as ações da Justiça no país; um par de algemas invisível, na verdade, do qual não há súmulas capazes de libertá-la a curto prazo.

[Editorial publicado na Folha de S.Paulo, deste domingo, 10 de agosto].

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