Editorial publicado em O Globo nesta quinta-feira (14/8)
É necessário destacar o verdadeiro e grave significado da decisão da Polícia Federal de afrontar os magistrados, logo após o Supremo Tribunal Federal ter deliberado contra a banalização no uso de algemas. É o que fez a PF na Operação Dupla Face, deflagrada em Mato Grosso e outros estados para desbaratar um suposto grupo de servidores públicos e despachantes, acusados de cobrar propina na liberação de certidões exigidas na venda de propriedades agrícolas.
Procurados por crime de colarinho branco, os presos foram algemados, em desafio ao que estabelecera o STF na semana passada, na anulação do julgamento de um caso de homicídio, porque o réu fora mantido de mãos atadas no tribunal.
A PF, longe de cometer um deslize de menor importância, reafirmou a tendência de se tornar um aparelho repressivo sem controle, a operar dentro de uma lógica definida em comum acordo com aliados que mantém na máquina do Estado, em especial no Judiciário e no Ministério Público. Reproduzem-se na democracia os porões da ditadura, quando os órgãos de repressão política do regime atuavam à margem das linhas de comando.
Diante do acinte da PF, o Supremo decidiu aprovar, ontem, a súmula que prometera para regulamentar o manejo de algemas pelas polícias. Com isso, as instâncias inferiores da Justiça passaram a ser obrigadas a acatar as regras. Não há margem técnica para recurso.
Agiu acertadamente o Supremo. Mas é bastante provável que o enquadramento da PF demande mais ações, e que em torno dele ocorram novos choques.
O atropelamento de direitos individuais pela PF, por juízes de primeira instância e MP veio em um crescendo até chegar ao paroxismo das operações Satiagraha e Toque de Midas. Esta, contra o empresário Eike Batista, desfechada por causa de alegadas irregularidades no leilão de uma estrada de ferro no Amapá, seguiu o enredo de sempre: apreensão de provas em escritórios e residências; e só não resultou na prisão de Batista porque ele estava no exterior. Não se tem notícia de algo importante encontrado nas incursões no Amapá e no Rio de Janeiro. A própria legalidade da participação da PF no caso é contestada. Sintomaticamente, a operação não impediu que o grupo multinacional Anglo American adquirisse de Eike Batista a empresa que utiliza no Amapá a ferrovia.
É nítido o viés de caça às bruxas nessas operações. A sociedade confia que a Justiça, trincheira de resistência democrática no passado, exorcizará as ameaças de o aparelho policial tornar-se um aparato orweliano que tudo vê, tudo ouve, tudo pode.
Revista Consultor Jurídico