por Paulo Fernando Silveira
O Tribunal Superior Eleitoral decidiu, no dia 10 de junho de 2008, por sua maioria que os políticos que são réus em processos criminais, em ação de improbidade administrativa ou em ação civil pública, sem condenação definitiva, isto é, sem sentença transitada em julgado, podem concorrer às eleições de 2008.
Os argumentos sustentados pelo relator do processo da consulta, ministro Ari Pargendler, e demais ministros, que o acompanharam, foram no sentido de que a lei de inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) já limita os critérios para a concessão de registro de candidaturas e que “o poder judiciário não pode, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade”.
Contrariamente, os três ministros vencidos, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Felix Fischer, defenderam, entre outros aspectos, a competência da Justiça eleitoral para apreciar os pedidos de registro de candidatura a cargo político na perspectiva da vida moral pregressa do político, enfatizando que a Constituição não exigiria do exercente do cargo um padrão de moralidade que já não fosse a natural continuação de uma vida pregressa também pautada por valores éticos.
Sem dúvida alguma, a decisão do TSE veio de encontro, como uma onda avassaladora, aos justos anseios de moralidade pública manifestados pela população, causando, a um só tempo, estupor, descrédito no poder judiciário e, acima de tudo, uma generalizada impotência no povo no sentido de não haver jeito de melhorar as instituições públicas. De outra sorte, a infeliz decisão alimenta a participação de pessoas inescrupulosas seja na administração de recursos públicos (prefeitos e governadores), seja na elaboração de leis (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores).
O raciocínio esposado pela maioria dessa Corte de Justiça Eleitoral não convence, data vênia, já que a Constituição (artigo14, §9º) determina que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, além dos especificados na própria Constituição, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.” (evidenciei)
A determinação constitucional constitui um comando e não é, apenas, uma opção legislativa infraconstitucional. A Constituição exige o exame da vida pregressa do candidato. Ora, se os congressistas, legislando em causa própria, ignoraram o preceito constitucional e fizeram constar da lei complementar um óbice intransponível quanto à necessária averiguação prévia da vida pregressa do candidato, ou seja, a exigência de condenação transitada em julgado, a qual, como se sabe, é demorada de se obter, pois no Brasil os processos criminais perduram por anos e anos, em razão dos inumeráveis recursos interpostos e diligências solicitadas pelo réu, eles, protegendo-se, agiram com espírito corporativo e contrariaram a intenção clara, precisa e manifesta da Carta Política. Assim, a Lei Complementar 64/90 (artigo1º, alínea “e”), salvo melhor juízo, é, nessa parte, inconstitucional.
Atente-se, ainda, que a própria Carta Política, em seu artigo 37, também erige o princípio da moralidade como uma das condições para a validade dos atos da administração pública. Logo, esse princípio, que prevalece sobre as próprias normas constitucionais e muito mais sobre a lei complementar ou ordinária, não pode ser olvidado. Como pressupor que um candidato eleito, que responda criminalmente perante a justiça por corrupção ou improbidade administrativa, vá exercer o seu cargo e praticar atos administrativos com dignidade, decência e lisura? Pode até acontecer, mas será em virtude de uma milagrosa exceção.
A meu ver, a decisão do TSE afronta o princípio constitucional da moralidade. Este permeia não só os atos dos agentes políticos e servidores públicos, mas se entranha também na sua própria conduta, atual e pregressa.
O julgado deprecia, ainda, a própria justiça, eis que a denúncia já foi recebida e o candidato já foi condenado por sentença, ainda que em primeiro grau. Ou seja, para o TSE — numa visão simplista, puramente legalista, positivista e técnica, de extremado amor à literalidade da lei e desconsiderando a vontade do povo, expressa na Constituição, que exige uma vida pregressa ética do candidato — nada vale a condenação judicial deste nas instâncias inferiores, já que está sujeita a recurso. Também, inacreditavelmente, para o TSE não tem significação alguma o fato de a denúncia ter sido recebida diretamente pelo próprio Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte de Justiça do país.
Não há que se invocar o princípio da inocência, restrito à dimensão penal, já que o princípio da moralidade é mais amplo, como o são, regidos por ele, o direito civil, o administrativo e o eleitoral. Mesmo sob o princípio da inocência o réu da ação penal pode ter alguns direitos restringidos, como no caso de prisão cautelar, provisória ou preventiva. Ele continua sendo considerado inocente, pois ainda não há sentença transitada em julgado, mas pode, eventualmente, responder ao processo na condição de preso.
O mesmo acontece no campo político, onde se maximiza o exame da moralidade. A elegibilidade pode sofrer restrições ante a comprovação, no exame da vida pregressa do candidato, da prática de atos tidos como imorais, principalmente quando denotados por ações penais e civis públicas relativas a atos ilícitos contra o erário público, ou de improbidade administrativa, em que seja réu, em processos em curso perante a justiça.
A Constituição, no que tange ao exercício do cargo e função públicos, por agente político ou servidor concursado, não abre mão do exame da vida pregressa do pretendente, ou seja, da exigência de uma conduta moral ilibada no passado. Se essa condição é exigida para os juízes e para os servidores públicos em geral, também o deve ser em relação aos políticos. Para todos eles, sem distinção — a Constituição é cega nesse aspecto, não distinguindo ninguém, em face do princípio da igualdade de todos perante a lei — o signo da moralidade se revela por atos diuturnos que não infrinjam os preceitos éticos de honestidade, idoneidade, lisura e decência. A pena, para os que não o detêm, no caso dos cargos eletivos, é a inelegibilidade. Se já eleito, é a perda do mandato, sem prejuízo das ações penal e cível.
A prevalecer o equivocado entendimento de que o restrito princípio penal da inocência se projeta para todas as áreas do direito, inclusive o administrativo, ocorrerá o absurdo de ter-se de dar posse a um juiz de direito ou a um delegado de polícia que tenha sido condenado por crime de corrupção ou fraude, com sentença ainda não transitada em julgado, em face da situação isonômica deles com a dos políticos, a qual, constitucionalmente não se pode ignorar.
É inegável o constrangimento social que será causado pelo fato de o inquérito policial ser presidido por esse tipo de delegado ou a licitude da conduta do réu ser julgada por um magistrado já condenado judicialmente por improbidade ou corrupção. Na área cível, por exemplo, haverá um retrocesso, caindo por terra conquistas recentes. Doravante, ficarão sem efeito os dispositivos que cuidam da responsabilidade objetiva por danos, independentemente da apuração de culpa (CC artigos 927, parágrafo único e 931; Código do Consumidor: Lei 8.078/90, artigos. 12 e 14).
Também fica derrogada a inversão do ônus da prova de que trata o Código do Consumidor (artigo14,§3º), já que o fabricante, o produtor e o prestador de serviços passam a ficar protegidos pelo princípio da inocência, ou seja, só serão considerados culpados se forem condenados definitivamente, incumbindo a prova a quem alegar o prejuízo.
O virtual acesso do eleitor — aquele que tiver fervor excepcional e inusitado interesse e se dispuser a enfrentar com paciência a burocracia forense — à ficha criminal do candidato, a ser permitido pelo TSE, conforme declarado na imprensa, não satisfaz, de maneira alguma, a exigência constitucional de o político comprovar sua vida pregressa pautada pela moralidade.
Não se argumente que o dispositivo infraconstitucional, ao exigir a condenação definitiva, protege o cidadão contra falsos processos crimes engendrado pelo Estado, a fim de evitar a sua legítima candidatura. É de se ver que, quando o judiciário recebe a denúncia penal — o ato fica sujeito ao pronto reexame, por meio do remédio do Habeas Corpus, pelo Tribunal, que o cassará se for ilegal ou abusivo, trancando-se a ação penal — já há nos autos a comprovação da materialidade do delito e indícios de autoria, sendo que o fato tido como criminoso já passou pelo crivo da polícia (indiciamento no inquérito policial) e do ministério público (autor da denúncia), que são órgãos distintos, ambos vinculados ao executivo, sendo que este último tem caráter permanente e goza de independência e isenção.
Sua missão primordial é a de, justamente, defender a sociedade civil e o patrimônio público, como titular da ação penal incondicionada e da ação civil pública (CF artigos 127 e 129).
Por outro lado, a Constituição nunca pode ser interpretada como se fosse uma lei ordinária ou complementar. É de superior hierarquia. Há de se considerar os fins nela objetivados para cujo alcance todo esforço interpretativo deve ser empregado. Quando a Constituição emite um comando, tal como o de se apurar a vida pregressa do candidato — que não pode ser ignorado por ninguém — ela autoriza, simultânea e implicitamente, o emprego de todos os meios necessários para sua realização, notadamente o da interpretação teleológica.
Submetida a matéria ao escrutínio do Supremo Tribunal Federal, este, no dia 6 de agosto de 2008, ignorando as sentidas necessidades da Nação e permanecendo inflexível ante as mudanças dos tempos, a exigir incondicionalmente a moralidade na administração pública, proferiu decisão que decepcionou grande parcela de homens sensatos e de boa fé deste país.
No confronto entre duas regras constitucionais conflitantes, a primeira referente à exigência de condenação criminal transitada em julgado para a cassação dos direitos políticos (artigo15, II, da CF), suportada pelo restrito princípio criminal da inocência, e a segunda que determina o exame da vida pregressa do candidato (Artigo 14, § 9º, do CF), amparada no princípio da moralidade, o Supremo optou pela de inferior hierarquia, esquecendo-se de que a segunda é de maior amplitude.
Ou seja, prestigiou-se a validade da regra menor, que se esteia num princípio constitucional especial, em detrimento da regra maior, baseada num princípio superior, primordial e estruturante da Nação. Não se olvide que, também, há gradação entre os princípios constitucionais, sobrepondo-se os estruturantes aos princípios gerais e especiais.
Não se cria, se estrutura e se mantém um Estado sem a observância do princípio da moralidade. Ele se constitui o fundamento da justiça e predomina sobre todos os demais, sejam os princípios gerais ou os especiais. Da mesma forma, se não forem regidos pelo princípio da moralidade os ramos eleitos (legislativo e executivo), que cuidam, respectivamente, da edição das leis e da administração dos recursos financeiros arrecadados com os impostos, não podem exercitar, com legitimidade, sua ação governamental.
Data vênia, nessa equivocada interpretação constitucional o Supremo seguiu a mesma trilha dos congressistas que elaboraram a lei complementar, que os beneficia. Prejudicados ficaram os valores fundamentais que informam e dão vida e substância à Constituição. Note-se que a vontade dos congressistas, externada na lei, é inferior à vontade do povo, manifestada na Constituição pelos princípios básicos por ela adotados.
A vontade popular é fonte primordial do poder político. Por conseqüência, a vontade do representante não pode ser, jamais, superior à vontade do representado, seu patrono. Desse modo, como a lei busca sua legitimidade na Constituição, há de se conformar, primeiramente, com os seus princípios e, somente depois, com suas normas e regras. O pior de tudo agora, depois da decisão definitiva do Supremo, é que nem o Congresso pode modificar a lei eleitoral. Para superar a decisão do Supremo há de se fazer uma emenda constitucional.
Considerando que em nosso país o executivo sempre foi muito poderoso, necessitando de limitação, e o legislativo apresenta-se com feição frágil e fisiológica, o judiciário, que também não escapa de sua tibieza histórica, esquece-se de sua função de freios e contrapesos (checks and balances) — dever de controlar o exercício constitucional dos dois outros ramos governamentais de modo que nenhum deles se sobreponha aos demais — o deixar de fortalecer o poder legislativo.
Para isso, bastava ao judiciário considerar inelegíveis os candidatos que sejam réus em processos em curso, sejam criminais, que envolvam danos ao erário público (peculato, por exemplo), ou de improbidade administrativa, já que a reputação desses postulantes aos cargos públicos, agora maculada, deixou de ser ilibada.
Não o fazendo, o Judiciário contribui para ampliar, ainda, a imoralidade no poder executivo, ao permitir a posse nos cargos públicos de pessoas inidôneas. Também, enfraquece a si próprio, pois os poderes eleitos (legislativo e executivo), de que tais elementos venham a participar, estarão sempre conluiados para anular o poder político do Judiciário, restringindo sua competência ou esvaziando sua jurisdição, seja por meio de leis, ou de emendas constitucionais, como se viu em 1926, no governo de Artur Bernardes, em 1937, com Getúlio Vargas e, recentemente, em 1968, durante a ditadura militar, no AI-5.
Infeliz é o país em que o povo não pode contar com o seu Judiciário para se defender contra alguns poderosos malfeitores que, eventualmente, queiram ocupar os elevados cargos públicos. Esperar que o povo — em sua maioria pobre, analfabeta e, tradicionalmente, destituída do senso de cidadania — vá, pelo voto, excluir do processo eleitoral esses candidatos de ficha suja, ou que os próprios partidos políticos o façam, é esperar demais, ou patentear que se está vivendo fora da realidade, principalmente se for considerado o incontrolável poder político, decorrente das fortes conexões mantidas nas elevadas esferas governamentais, e da impositiva persuasão financeira e econômica de que normalmente dispõem esses elementos
Ao Judiciário, como poder não eleito, cabe ajudar a delinear os contornos de um processo eletivo balizado pela moralidade, a fim de que o povo faça livremente a escolha de seus dirigentes entre homens de bem.
Data vênia, o TSE e o STF, ambos perderam, nos aludidos julgamentos, excelentes oportunidades de ajudar o povo — que quer e anseia pela moralidade pública — a construir um país com instituições fortes e sadias.
Revista Consultor Jurídico