por Márcio Thomaz Bastos e Luiz Armando Badin
[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, deste domingo, 20 de abril]
Em 15 de abril de 2005, o presidente Lula assinou um decreto que o fará lembrado pelas próximas gerações de brasileiros. Ao concluir a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, pôs um ponto final em 20 anos de conflito e assegurou a realização do direito constitucional de 18 mil índios que habitam um dos lugares mais bonitos do país.
Outros interesses públicos nacionais relevantes também foram preservados. A homologação abriu uma nova etapa no desenvolvimento da região e afirmou a soberania do povo brasileiro sobre porção estratégica de nosso território.
Todos aqueles que participaram da luta pelo cumprimento da Constituição sabem como foi duro o caminho percorrido até que chegássemos a essa decisão simbólica, hoje reconhecida como um dos pontos culminantes da política indigenista.
Boa parte dessas dificuldades se deve ao fato de que Raposa Serra do Sol sintetiza, de maneira exemplar, as contradições da sociedade brasileira. Falamos de uma área de 1,7 milhão de hectares — Portugal e Bélgica têm, juntos, aproximadamente esse tamanho —, em que vivem, na fronteira com a Guiana e a Venezuela, cinco etnias diferentes. Joaquim Nabuco, em sua célebre defesa na Questão da Guiana, referiu-se expressamente à presença dos macuxis para sustentar a posse brasileira sobre o território disputado com o país vizinho.
A maioria dos índios conserva língua, usos e costumes tradicionais. Ao longo do tempo, foi estimulada a formação de pequenas colônias e de enclaves, cujo crescimento previsivelmente tenderia a exacerbar os conflitos fundiários, colocando em risco a própria sobrevivência física e cultural das comunidades tradicionais, com a destruição de seu habitat natural.
A opção política crucial então era: demarcar a terra em ilhas, como queria a oligarquia local, ou manter a integridade do conjunto, evitando seu estilhaçamento. O desafio sempre foi tratado como uma verdadeira questão de Estado. A Raposa Serra do Sol situa-se na faixa de fronteira e tem importância estratégica para a defesa do território brasileiro. Ali também está localizado o Parque Nacional do Monte Roraima. Há, portanto, uma sobreposição de regimes jurídicos especiais, todos constitucionalmente protegidos -defesa da soberania territorial, direitos dos índios, conservação ambiental, autonomia do ente federativo e respeito a sua legítima aspiração ao desenvolvimento.
Para chegar a uma solução justa e equilibrada, foram feitas várias visitas “in loco” e executados rigorosos estudos técnicos. Todas as partes envolvidas foram consultadas e ouvidas. O Supremo Tribunal Federal, oportunamente chamado a se manifestar, decidiu favoravelmente à edição do decreto homologatório, removendo os obstáculos jurídicos que até então impediam a resolução definitiva do conflito por quem tinha competência legal, instrumentos e meios para fazê-lo: o Poder Executivo. Foram tomados todos os cuidados para dar consistência jurídica e política à decisão do presidente.
A solução adotada harmonizou os vários interesses públicos nacionais e deu máxima eficácia a um feixe de normas da Constituição Federal. Roraima foi beneficiada por medidas compensatórias, em um plano de desenvolvimento social e econômico.
A maioria dos ocupantes não índios que, de boa-fé, ainda permaneciam na área, foi pacificamente reassentada. Assegurou-se plena liberdade de atuação às Forças Armadas e à Polícia Federal. A presença soberana e incontrastável do Estado brasileiro foi conciliada com a proteção do meio ambiente e da diversidade étnica e cultural, bens valiosos que a Constituição, generosamente, soube reconhecer.
Falta apenas finalizar a execução do decreto presidencial, concluindo o processo de extrusão da minoria remanescente. Ela já teve mais de três anos para deixar a área invadida. Não é momento de retroceder. É hora de sedimentar os progressos históricos alcançados ao longo de duas décadas, graças ao esforço daqueles que se envolveram na construção dessa bela obra jurídica e política. Nossos filhos e netos saberão reconhecer sua fundamental importância para a idéia que temos de nação.
Revista Consultor Jurídico