TRF1 indefere pedido de exclusão da Funai na defesa de indígenas em ação penal posterior a pedido da mesma fundação para integrar o processo

Em mandado de segurança impetrado contra decisão do Juízo da 2ª Vara da Subseção Judiciária de Governador Valadares (MG), a Segunda Seção do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) confirmou a sentença e denegou a segurança pedida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), mantendo a fundação como defensora dos réus, lideranças indígenas das etnias Pataxó e Krenak denunciadas pelo crime previsto no art. 148 do Código Penal (CP) de invasão de um prédio da Funai, mantendo 16 pessoas em cárcere privado.

A Funai havia requerido sua inclusão no processo criminal sustentando que a defesa promovida pela Defensoria Pública da União (DPU) “se limitou a negar os fatos imputados aos indígenas, não sendo tecnicamente satisfatória”.

Posteriormente, a autarquia, intimada a se manifestar sobre o descumprimento de alguns acusados dos termos acordados por ocasião da suspensão condicional do processo, solicitou em juízo que a defesa fosse novamente assumida pela DPU. Argumentou a fundação que a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos índios sua organização, costumes, crenças e tradições, e que o regime tutorial da Funai se justifica quando o índio está completamente isolado, e quando em pauta direitos coletivos, difusos ou relacionados a menores.

Relator do processo, o juiz federal convocado Érico Rodrigo Freitas Pinheiro explicou que, alegado estarem os acusados integrados à sociedade, não justificando a assistência jurídica pela autarquia, a Lei 9.028/1995, que dispõe sobre o exercício das atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União, no art. 11-B, § 6º, não veda a possibilidade de atuação judicial da impetrante em favor do indígena.

Frisou o magistrado que, conforme as informações prestadas pela autoridade impetrada, “o delito em questão decorreu de reivindicação de diferentes etnias acerca de seu direito coletivo à saúde, estando, portanto, intrinsecamente ligado à própria condição de indígenas dos réus”, em conformidade com a Portaria AGU 839/2010.

Conclui o voto afirmando que o pedido posterior de retornar a defesa para a DPU é claramente incompatível com o primeiro pedido, em evidente violação do princípio da proibição de comportamento contraditório e da boa-fé objetiva processual, além de considerar que o retorno da DPU ao caso acarretaria possível prejuízo à defesa dos réus.

Processo 1008484-84.2021.4.01.0000

TRT/MG: Mantém justa causa de motorista com CNH vencida que se envolveu em acidente

Os julgadores da Nona Turma do TRT de Minas confirmaram decisão do juízo da 31ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, que validou a dispensa por justa causa aplicada por uma empresa de engenharia a um motorista. O trabalhador estava com a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida quando se envolveu em acidente de trânsito com o veículo de grande porte que conduzia. As provas evidenciaram que houve condução inadequada pelo motorista, reconhecendo o relator do recurso, desembargador Ricardo Antônio Mohallem, a culpa única e exclusiva do empregado. Para o magistrado, a falta foi grave o suficiente para ensejar a justa causa.

Ao recorrer da sentença, o reclamante sustentou que a empresa sabia que sua CNH estava próxima do vencimento e, mesmo assim, não exigiu prova da renovação, permitindo-o continuar a conduzir do veículo. Argumentou ainda que apenas o envolvimento no acidente, sem prova da culpa, não autorizaria a dispensa sem justa causa. O motorista pediu que a dispensa fosse modificada para sem justa causa, com pagamento das verbas rescisórias pertinentes.

Mas o relator não acatou a pretensão. Ao analisar o boletim de ocorrência lavrado por ocasião do acidente, constatou que a CNH do motorista foi apreendida por estar vencida há mais de 30 dias. Conforme registrado no documento, o profissional não observou a distância de segurança e a velocidade compatível com a via. Houve colisão com veículo de terceiro que trafegava na faixa correta. O veículo envolvido foi jogado contra a mureta, mesmo tendo o condutor sinalizado para o autor com buzina.

A empregadora dispensou o reclamante por justa causa dois dias depois, aplicando ao caso o artigo 482, alíneas “h” e “m”, da CLT, que se referem a atos de indisciplina e “perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado”. Este último item foi incluído pela Lei nº 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista.

Na carta de dispensa, a reclamada registrou que o motorista deixou de comunicar o vencimento da CNH em 29/3/2019, considerada requisito imprescindível ao exercício da atividade remunerada. Nesse contexto, exerceu função de motorista de veículo automotor de grande porte, sem possuir habilitação necessária para tanto, e se envolveu em acidente de trânsito, durante o horário de trabalho, conforme relatado em boletim de ocorrência.

Na visão do relator, a empresa agiu corretamente, não podendo se impor a ela as consequências da omissão do trabalhador de não renovar em tempo hábil a sua CNH. O julgador ponderou que as obrigações como empregadora não excluem as do autor, indispensáveis ao exercício da profissão (artigo 159 do Código de Trânsito Nacional). Entre elas, todas que se relacionam à CNH, documento pessoal e intransferível. “É ele quem se candidata a obtê-la junto ao Departamento Nacional de Trânsito. Quem deve portá-la e exibi-la à autoridade competente”, pontuou.

Testemunha ouvida noticiou que a empresa fiscalizava a validade da CNH todo início de ano, informando aos motoristas eventual vencimento iminente. O próprio reclamante admitiu, em depoimento, que, ao ser informado do vencimento, comunicou à representante da empresa que precisava de um tempo para resolver “um probleminha no Detran”. Como apurado no processo, o “probleminha” era a suspensão do direito de dirigir por conduzir veículo sob efeito de bebida alcoólica.

Diante do contexto apurado, o voto condutor reconheceu que o acidente foi causado por culpa única e exclusiva do empregado, entendendo que a justa causa deve ser mantida. “A falta está indubitavelmente configurada. Sobre isso não é preciso mais discorrer. Os fatos falam por si. Nitidamente, não se trata de uma falta que possa passar em branco, como se não existisse. Foi gravíssima, seja pelos prejuízos materiais causados, seja pelos potenciais danos à própria vida humana”, foi enfatizado no voto, negando-se provimento ao recurso do trabalhador. A decisão foi unânime.

STJ Rejeita queixa-crime por difamação contra conselheiro de contas que pediu investigação sobre auditor

A configuração de crimes contra a honra exige o dolo específico de ofender. Desse modo, se alguém requer à autoridade competente a apuração de fatos supostamente irregulares, e – mais ainda – se esse ato é condizente com o cargo exercido pelo denunciante, não se pode falar em crime contra a honra.

Por unanimidade, esse foi o entendimento adotado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para rejeitar, nesta quarta-feira (15), a queixa-crime por difamação ajuizada por um auditor do Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE-MG) contra o conselheiro Cláudio Couto Terrão. O conselheiro havia apresentado requerimento ao corregedor do TCE-MG para que fosse apurada suposta falta disciplinar do auditor.

O episódio ocorreu durante sessão do pleno do TCE-MG, em 2019, transmitida ao vivo pelo canal da instituição no YouTube. Na ocasião, o conselheiro fez a leitura integral da representação, que apontava suspeitas de dispensas médicas forjadas para que o auditor pudesse participar de palestras ou realizar viagens.

Segundo o autor da queixa-crime, a divulgação do pedido de apuração teve o intuito de gerar exposição, alarde e constrangimento, atingindo a sua honra objetiva.

Jurisprudência do STJ exige intenção de ofender para configurar difamação
Em seu voto, a relatora, ministra Laurita Vaz, entendeu não ser possível inferir do caso a prática do crime de difamação. Segundo ela, o ato do conselheiro do TCE-MG de, em sessão pública, pedir a abertura de investigação interna contra auditor do órgão é condizente com o exercício do cargo, que tem a publicidade como regra.

“A leitura de fatos que traduzem potencial suspeita de irregularidades perante o pleno da corte de contas, para oportuna apuração pela autoridade competente, não configura a prática de crime contra a honra”, afirmou.

A magistrada também destacou que a jurisprudência do tribunal assevera que, na peça acusatória por crimes dessa natureza, é exigida a demonstração mínima da intenção deliberada de lesar a honra alheia.

Processo: APn 946

TRT/MG reconhece relação de emprego entre motorista e plataforma de aplicativo

O juiz Bruno Alves Rodrigues, titular da 2ª Vara do Trabalho de Divinópolis, reconheceu a relação de emprego entre um motorista e uma empresa de aplicativo de transporte, pelo período de julho de 2020 a setembro de 2021, sob a modalidade de contrato de trabalho intermitente. Na sentença, a empresa foi condenada a pagar ao trabalhador 13º salários, férias, FGTS do período do contratual, como também as verbas rescisórias decorrentes da dispensa sem justa causa (como aviso-prévio e multa de 40% do FGTS), além da multa pelo atraso no acerto rescisório, na forma do artigo 477 da CLT.

Em sua decisão, o julgador expôs os fundamentos que o levaram à conclusão sobre a existência dos pressupostos do vínculo de emprego na relação de trabalho que se desenvolveu entre o motorista e a empresa de tecnologia de transportes urbanos. Como forma de propiciar uma compreensão profunda do tema discutido, situou o caso dentro de um contexto histórico na era contemporânea, retratando as fases da revolução tecnológica moderna e seus efeitos na exploração e organização do trabalho humano: “Efetivamente, esta potente tecnologia preditiva acaba por marcar o advento de um novo modo de conjugação da relação entre capital e trabalho humano, e para melhor ilustrar as profundas mudanças na organização do trabalho e da economia a partir da mudança de paradigma tecnológico prevalente, imperativo se torna a compreensão dos quatro momentos que marcaram as fases tecnológicas da revolução industrial”, pontuou.

A terceira fase da revolução industrial – Revolução tecnológica digital – Aprendizagem profunda da máquina

Nas palavras do magistrado:

“Vivenciamos, na era moderna, uma revolução industrial que pode ser dividida em três fases, a última delas marcada pela chegada da era da informática, com a migração dos sistemas analógicos para os digitais (iniciada na segunda metade do século XX).

A revolução tecnológica digital, que marca a terceira fase da revolução industrial, acaba por ensejar, contraditoriamente, um grande enxugamento da própria presença do setor industrial na condução da forma de organização da vida em sociedade. Se, nas duas primeiras fases da revolução industrial, tanto o processo de formação do tecido social de coletivos urbanos quanto o desenho do modelo econômico de geração e distribuição de renda estavam diretamente ligados à atividade industrial, a partir da terceira fase da revolução industrial passa-se a verificar uma acentuada redução do papel da indústria na organização da vida em sociedade.

[…]

Consideramos equivocado, assim, associar apenas à indústria a fase revolucionária que se inicia com o advento da aprendizagem profunda da máquina, a partir de 2012. O potencial revolucionário da aprendizagem profunda da máquina reside exatamente na sua capacidade transformadora em relação ao setor de serviços, no qual se insere o ramo de atividade da reclamada, cuja carência de habilidades flexíveis quanto às quais até então não se mostrava viável a automação, e que hoje ocupa mais de 70% da mão de obra nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

A revolução do aprendizado profundo atinge notadamente os trabalhadores expurgados do ambiente fabril em razão dos fenômenos da robotização, da terceirização e do outsourcing, e que passaram a cumprir rotinas flexíveis relegadas a um setor de serviços que crescia à proporção que se reduzia o tamanho da indústria submetida ao modelo de learn manufacturing.

A revolução da aprendizagem profunda, assim, ocorre dentro da revolução tecnológica digital (terceira fase da revolução industrial), mas já trazendo profundos efeitos que lhe são próprios no que diz respeito ao desencadeamento de uma reformulação no desenho organizacional da atividade econômica e da organização social”.

As três fases da revolução industrial – As mudanças estruturais na forma de trabalho, na figura do empregador e na operacionalização do controle exercido sobre o empregado.

“As três fases da revolução industrial se apresentam vinculadas a diferentes paradigmas tecnológicos da era moderna, e a estes se soma um quarto paradigma, também revolucionário, com o advento da aprendizagem profunda da máquina”, destacou o juiz.

A primeira fase – O magistrado explicou que a primeira fase da revolução tecnológica moderna (1760 a 1850), mais conhecida como revolução industrial, é desencadeada pela concentração física da maquinaria em fábricas. Tratava-se de um modelo de produção totalmente dependente do emprego do trabalho humano, inclusive no que diz respeito à matriz energética:

“O funcionamento das máquinas nas fábricas dependia do emprego direto da força humana, como se verificava na operação de vários teares, ou mostrava-se dependente da alimentação humana de carvão em fornalhas de caldeiras geradoras de força motriz a vapor. Assim, na interação homem-máquina situava-se a dependência tanto da geração da força motriz quanto da operacionalização da maquinaria. A subordinação da figura do trabalhador ao modelo produtivo era efetivada de forma direta, com controle da produção exercido pela figura do proprietário, dos proprietários (sociedades pessoais) ou de seus prepostos na gestão de um modelo de trabalho radicado na força e remunerado pelo tempo de eficiência na motricidade da maquinaria (relação subordinativa homem-homem na operação da máquina)”.

A segunda fase – De acordo com o juiz, a segunda fase dessa revolução (1850-1945) marca a passagem do modelo de fábrica para o modelo de indústria:

“Se primeiramente importava a concentração geográfica de trabalhadores e máquinas para melhor gestão da força de trabalho, inclusive no manejo humano de uma matriz energética localizada, nesta segunda fase houve ampliação exponencial da disponibilidade, acessibilidade e usabilidade da matriz energética, que passa do vapor para a energia elétrica e o petróleo. A eficiência destas novas matrizes energéticas permitiu nova modelagem da maquinaria, cujo funcionamento deixou de depender do emprego direto da força humana para passar a se vincular, automaticamente, a uma matriz energética externa. Nesta segunda fase, apesar da maquinaria já poder ser colocada em funcionamento de forma automática, ainda não havia tecnologia para programação de rotinas de tarefas a serem executadas exclusivamente pela máquina. Carecia-se da presença do homem na linha de produção, como eternizado no filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, de 1936. Em termos práticos, a execução do movimento de uma prensa deixou de depender do emprego da força humana, mas a eficiência do movimento desta prensa, para se alcançar a produção almejada, continuava a depender intrinsecamente da ação humana para se efetivar posicionamento de uma chapa metálica no local correto da prensa, com oportuno acionamento e ulterior retirada da peça para prosseguimento do seu tratamento em linha de produção. (…) As plantas industriais passam a ser estruturadas a partir do desenho de uma cadeia produtiva, cuja motricidade passa a ser automatizada, mas cuja eficiência operacional estará totalmente associada ao emprego da habilidade humana. (…) A verificação de um controle da força de trabalho ínsito a um processo ampliado de cadeia produtiva estruturada fez com que a subordinação do trabalhador migrasse da figura do proprietário para figuras interpostas e descentralizadas de chefias operacionais, que verticalmente se responsabilizavam por etapas da cadeia produtiva. A estruturação de empresas, assim, passa a estar mais focada no objetivo comercial do processo industrial, do que propriamente na condição pessoal dos sócios, o que fez com que a estruturação jurídica das sociedades empresariais migrasse acentuadamente do modelo de sociedades pessoais para o de sociedade de capitais, notadamente as sociedades anônimas”.

A terceira fase – Quanto à terceira fase da revolução tecnológica da era moderna (1945-2012), o julgador explicou que esta foi marcada pelo fenômeno da digitalização da informação, associada à capacidade computacional por programação apta à predição de rotinas de trabalho fixas, até então dependentes da habilidade humana:

“Nesta terceira fase, a automação se estendeu da força motriz para as tarefas operacionais dependentes de habilidades humanas afetas a rotinas plenamente previsíveis, eis que fixas e repetitivas. Da máquina automatizada passa-se à máquina automatizada e programável. As cadeias produtivas foram escrutinadas, separando-se, para assimilação da robótica, as habilidades programáveis. Já em relação aos serviços não programáveis/robotizáveis (por dependerem da plasticidade e da flexibilidade próprias à habilidade humana), estes passaram a ser separados entre essenciais ou não essenciais para descentralização do trabalho tido como não essencial, assim classificado aquele não associado, intrinsecamente, à atividade fim (a exemplo de serviços de asseio e conservação, marketing, call center, etc.). A disseminação de meios telemáticos de comunicação e, portanto, de uma forma de controle remoto, passou a permitir controle indireto sobre serviços descentralizados através da terceirização ou do outsourcing, além de se viabilizar um controle menos hierarquizado e mais horizontalizado da produção, eis que centrado muito mais na capacidade computacional de verificação e fiscalização de resultados atingidos pelo trabalhador do que propriamente na fiscalização por parte de uma chefia imediata (subordinação estrutural homem-empreendimento econômico). Se, na primeira fase da revolução, o enfoque da gestão estava centrado na operação da fábrica e, na segunda fase, o enfoque da gestão passou a estar focado no processo da cadeia produtiva, nesta terceira fase, a gestão passou a ter condições de se importar tão somente com a aferição do resultado da atividade de produção. A educação passou a estimular formação flexível da mão de obra para adaptação às diversas demandas localizadas de tarefas não automatizáveis. A segurança de contar com recursos de controle telemático de uma produção descentralizada, somada à predição computadorizada de resultados afetos a rotinas fixas, acabou por exponenciar o uso de estruturas jurídicas empresariais centradas muito mais no objetivo comercial das empresas do que na condição pessoal dos proprietários. Neste momento, mais do que sociedades anônimas focadas na cadeia produtiva, passa-se a se destacar a atuação de entes jurídicos desguarnecidos de objetivo empresarial próprio, eis que estruturados apenas para aportar investimentos e receber resultados de diversas empresas descentralizadas, notadamente a partir da conformação de holdings e da estruturação de fundos de investimento que visavam assentos em conselhos de administração empresariais. Os grandes centros urbanos estruturados no modelo de trabalho e renda definidos pelas primeiras fases da revolução industrial passam a conviver com crescentes taxas de desemprego e evasão, decorrentes da automação e do outsourcing. (…) Acentua-se a concentração de riquezas nas mãos dos gestores das holdings e dos fundos de investimento frente a pauperização da população progressivamente desempregada ou sujeitada a subempregos progressivamente precarizados em ambiência de concorrência instada em uma massa crescente de excluídos”.

A quarta onda revolucionária

Conforme destacou o juiz na decisão, é neste contexto socioeconômico e social que surge uma quarta onda revolucionária, a partir de 2012, com o advento da aprendizagem profunda da máquina. Ele chamou a atenção para o fato de que, nesta fase da revolução tecnológica, a subordinação do trabalhador ao empreendimento que lucra com a mão de obra deixa de ser estrutural e passa a ser algorítmica:

“A partir de então, rompe-se com a barreira protetora de postos de trabalho humano atrelada à capacidade preditiva ínsita à inteligência humana, substanciada exclusivamente no maior conhecimento de dados ou no desempenho de tarefas de rotinas flexíveis (grifos originais). A máquina passa a conceber soluções técnicas com eficiência supra-humana, ocupando nichos até então reservados tanto a profissionais dotados de maior qualificação profissional (diagnóstico médico, com exames de imagem submetidas à classificação por padrões; etc.), bem como postos de trabalho afetos a tarefas que, embora flexíveis, também permitem predição técnica de soluções (gestão logística e de transporte por geolocalização; atendimento automatizado de call center com reconhecimento de voz etc.).

[…]

A gestão destes processos de trabalho autoadaptáveis é feita por um algoritmo, que promove controle ubíquo do comportamento de cada trabalhador. Plataformas digitais fazem gestão geolocalizada da mão de obra, com predição supra-humana da mais eficiente relação de exploração do trabalho, numa equação algoritmizada a tratar do preço de serviço x disponibilidade de mão de obra. Além disso, o algoritmo é também dotado de objetivos referentes à indução comportamental (uso de redes sociais para adesão à ferramenta, associação da disponibilidade de trabalho a mecanismos de avaliação, outorga de premiações e outros estímulos remuneratórios, etc.). Assim, nesta fase da revolução tecnológica, a subordinação do trabalhador ao empreendimento que rentabiliza com a mão de obra deixa de ser estrutural e passa a ser algorítmica. O uso destes algoritmos de controle preditivo individual, em uma sociedade já marcada pelo desemprego e pelo subemprego, acaba por instigar uma concorrência à sujeição entre os trabalhadores vinculados às plataformas, concorrência essa muito bem manejada e estimulada por um algoritmo programado para a obtenção do maior lucro, independentemente da preservação de patamares mínimos civilizatórios.

O resultado deste cenário de exponenciação do processo de automação e de uberização de um trabalho humano que já vinha sacrificado pela conjuntura de automação, terceirização e ‘outsourcing’ tem sido catastrófico.

A ocupação de novos nichos de trabalho por máquinas dotadas de capacidade sobre-humana de predizer e atingir resultados implica não apenas aumento exponencial do desemprego e do subemprego, mas determina também uma nova modelagem na estruturação empresarial, bem como novo perfil de gestão dos negócios. A já verificada migração progressiva do modelo de estrutura empresarial por sociedade pessoal para outro de sociedades de capitais acaba por alcançar seu ápice. Rompe-se, definitivamente, com o residual verniz de vínculo interpessoal ainda existente em organizações estruturadas para gestão do capital (como as holdings). O anseio capitalista de acúmulo de capital passa a prescindir de estruturas jurídicas mais elaboradas, antes necessárias ao controle e à fiscalização de resultados dos empreendimentos em que investiam. Tais estruturas jurídicas de controle e fiscalização foram substituídas por algoritmos operados diretamente por fundos de investimento.”

As especificações do caso concreto – Após situar a forma de exploração do trabalho humano na era contemporânea, a sentença passou a tratar das especificações do caso. Foram citadas as fontes de informações e a bibliografia. Confira outros trechos da sentença:

No Brasil, cerca 32,4 milhões de pessoas utilizam algum tipo de “app” para trabalhar: “Do outro lado da relação jurídica identificamos dezenas de milhões de trabalhadores em condição de subemprego. Conforme veiculado pela CNN, um fenômeno incentivado pela elevação das taxas de desemprego e pela necessidade de isolamento social, que obrigou milhares de restaurantes e estabelecimentos comerciais a manter as portas fechadas ou a funcionar com restrição ao atendimento aos clientes, obrigou um contingente adicional de 11,4 milhões de brasileiros a recorrer aos aplicativos para garantir uma parcela ou a totalidade de sua renda, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva obtida com exclusividade pelo Estadão. Segundo o levantamento, com esse crescimento durante o último ano, o Brasil tem hoje aproximadamente 20% de sua população adulta – o equivalente a 32,4 milhões de pessoas – que utilizam algum tipo de app para trabalhar”. https://www.cnnbrasil.com.br/business/cerca-de-11-4-milhoes-de-brasileiros-dependem-de-aplicativos-para-teruma-renda/ (acesso em 23.09.2021)

“Lógica do maior ganho, a partir da maior precarização do valor trabalho”:“O surgimento de plataformas ou aplicativos eletrônicos, que instrumentalizam a conectividade virtual, para promover a intermediação mercantilizante da mão de obra, apresenta-se, na verdade, a exemplo a terceirização, como mais um fenômeno de inserção de um intermediário na relação laboral, a figurar como um especulador sobre o trabalho alheio. Nas palavras de Delgado, trata-se da instituição do capitalismo sem reciprocidade (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015.), fundado na exclusiva acumulação de riquezas, na medida em que o mercador de mão de obra está orientado pela lógica do maior ganho, a partir da maior precarização do valor trabalho.

Fenômeno da “uberização” e exploração do trabalho alheio – “Subordinação estrutural ou até mesmo algorítimica”: “A prevalência do discurso niilista na modernidade, somada à chegada daquilo que Delgado descreve como terceira revolução tecnológica do capitalismo (conquistas da microeletrônica, da robotização, da microinformática e das telecomunicações (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 38.), acabou por tornar extremamente dinâmico o surgimento de técnicas de exploração do trabalho humano, retirando proveito do rompimento processado em relação às barreiras físicas de espaço e de tempo, no campo comunicacional e de conexões empresariais, para impor, contraditoriamente, fronteiras e obstáculos na conexão humana efetivamente colaborativa (e não meramente explorativa). Adota-se o discurso pelo qual sobreleva-se a importância da rede de comunicação virtual (naquilo que hoje se denomina fenômeno da uberização) ou de conexão empresarial (fenômenos da terceirização e outsourcing) como algo a ser protegido para além do trabalho humano por estas redes instrumentalizado. Pelo fenômeno denominado uberização, diversas empresas sustentam ter como objetivo a manutenção de uma plataforma de conectividade virtual, mas na verdade fazem uso de um algoritmo por meio do qual exercitam o real objeto social, qual seja, a exploração do trabalho alheio. São empresas cuja performance não está atrelada à simples disponibilização de aplicativos eletrônicos, mas sim que, essencialmente, figuram como credoras do fruto do trabalho alheio, integrando as atividades dos colaboradores à sua própria atividade – o que perfaz aquilo que hodiernamente resta consagrado na doutrina e na jurisprudência como subordinação estrutural ou até mesmo algorítmica. Simplificando: a empresa não precifica o uso da plataforma digital (ou seja, cobraria o valor “x” para acessar a sua plataforma); ela precifica sim o valor do serviço de transporte, e é sobre isto que extrai seu faturamento. Assim, são intermediadores de mão de obra, processando algoritmos que definem o preço do serviço alheio, a forma de pagamento deste serviço, o padrão de atendimento do usuário e a forma de acionamento do colaborador. Reitere-se, então: trata-se de empresário da exploração de serviços, e não, primariamente, da exploração tecnológica, porquanto retém participação cobrada diretamente com referência ao valor do trabalho alheio, detendo o empreendimento com todo o ‘modus operandi’ da intermediação virtual do serviço.

São empresas que se distanciam da essência da economia colaborativa, que promove a alteração da dinâmica do consumismo clássico e individualista por outro de padrão comunitário, na medida em que transforma todos em seus consumidores ou em seus prestadores de serviços, centralizando faturamentos milionários ou até mesmo bilionários. São responsáveis por práticas que esvaziam o dogma do trabalho valorizado enquanto “importante instrumento de afirmação individual, social e econômica da larga maioria das pessoas na sociedade capitalista (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015.).”

Desafio para o Poder Judiciário: Prosseguindo em sua análise, o juiz destacou que:

“É sobre essa realidade que o Poder Judiciário está a ser demandado, como no caso sub judice, a trazer resposta que preserve a paz e a própria sustentabilidade do tecido social. (grifos originais). Ao tratarmos de processos de negócio substanciados em aprendizagem profunda da máquina, estamos a tratar de uma ferramenta de vocação monopolista extremamente potente no propósito de concentração de renda nas mãos de quem detém a tecnologia”.

“Os dados são o novo petróleo”: “Um jargão passa a representar lugar comum na era da IA: “os dados são o novo petróleo” (LOUREIRO, R. Os dados são o novo petróleo. Istoé Dinheiro, 2018.) Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/os-dados-sao-o-novo-petroleo/ Acesso em: 01 jul. 2020.

A geração de riqueza passa a estar intimamente vinculada à capacidade de gerir dados, pois as empresas mais eficientes em tal gestão tenderão ao domínio monopolístico do mercado. “Com dados abundantes, a predição da máquina pode funcionar bem. A máquina conhece a situação, no sentido que fornece uma boa predição” (AGRAWAL, A.; GANS, J.; GOLDFARB, A. Máquinas Preditivas. A Simples Economia da Inteligência Artificial. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019, p. 59.). Assim, a acessibilidade aos dados e o domínio de algoritmos fortes representa a tônica do capitalismo contemporâneo. Como pontua Harari, “a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos da minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista (HARARI, Y. N. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 326.)”.

Máquinas cada vez mais potentes e distanciamento da centralidade da figura humana:

“Essa é a conjuntura desenhada em um mundo dotado de máquinas cada vez mais potentes e, por outro lado, infelizmente, composto de seres humanos cada vez menos providos de capacidade crítica para filtrar informações pela ótica de valores e parâmetros cognitivos, societários e éticos, o que amplifica o desafio das instituições voltadas à pacificação social, como o Poder Judiciário. A tecnologia deve representar mero meio a serviço do homem que trabalha e exerce a cidadania, e não instrumento de exponenciação progressiva de injustiça social. Quando nos distanciamos da centralidade da figura humana, quando admitimos a conversão do homem em apêndice da máquina, a tecnologia se transforma em tecnocracia. Adota-se o discurso pelo qual sobreleva-se a importância da rede de comunicação virtual ou de conexão empresarial como algo a ser protegido para além do trabalho e da dignidade humana por estas redes instrumentalizado. (…)

“Nova hermenêutica constitucional, numa releitura das condições de efetividade dos valores igualdade, liberdade e trabalho”:

“A escorreita compreensão da tecnologia explorada por empresas como a reclamada representa suposto para uma nova hermenêutica constitucional, numa releitura das condições de efetividade dos valores igualdade, liberdade e trabalho, na missão das Instituições de Estado de mantença do compromisso constitucional cuja práxis passa a se sujeitar ao uso indiscriminado da eficiência tecnicista da IA. (grifos originais). Há que se reconfigurar, neste contexto, nossos parâmetros de compreensão acerca da validade da manifestação da vontade nos atos e negócios jurídicos celebrados sob efeito da capacidade indutiva e preditiva da aprendizagem profunda da máquina. Exemplificativamente, há que se compreender o fenômeno da IA para: a) se decidir sobre responsabilidades civis e criminais de atuais gestores de fundos de investimento; b) se compreender a influência do uso desta tecnologia nos processos eleitorais e na preservação da democracia, inclusive no que diz respeito à disseminação de fake news; c) se subsumir um serviço, prestado por intermédio de plataforma eletrônica, ao arcabouço normativo de regulação de relações comerciais, de trabalho, de consumo, tributárias, administrativas, entre outras (a exemplo da verificação de fato gerador tributário na gestão de hospedagem mediada por plataformas, ou da configuração do vínculo de emprego no transporte mediado por plataformas eletrônicas).

Reafirmação da jurisprudência de que cabe à empresa comprovar os fatos impeditivos da relação de emprego:

“Estas as premissas que nos remeterão à resposta ao dissenso estabelecido na litiscontestação e que fora expressamente pré-questionado pela ré em relação à interpretação dos arts. 1º e 170, da CF/88: como regra geral, qual seria a catalogação jurídica da relação estabelecida entre dezenas de milhares de pessoas físicas que dedicam tempo de trabalho à prestação pessoal e onerosa de serviços, no anseio de aferição de verba alimentar essencial à subsistência pessoal e familiar, quando se vincula a uma empresa que detém a modelagem algorítmica que gere a plataforma eletrônica que concentra o cadastro de clientes e de prestadores de serviços, define o valor dos serviços e sobre estes e na proporção destes retira seu faturamento em prol de um conglomerado avaliado em dezenas de bilhões de reais? (grifos originais). Aqui a nossa resposta perpassa pela reafirmação da jurisprudência que vem a presumir que, sempre que admitida a verificação de trabalho humano, e mais concretamente no caso em tela, uma vez admitido que determinado trabalhador efetivamente esteve cadastrado como motorista à plataforma eletrônica gerida por empresa que recebe percentual e lucra a partir de cada serviço de transporte realizado, representará ônus da empresa comprovar algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante (art. 818, II, da CLT) de ver reconhecido o vínculo de emprego. Não se trata de inversão do ônus da prova, mas sim de aplicação de jurisprudência mansa e pacífica no sentido de que, “alegando fato impeditivo do direito da empregada, cabia à reclamada o ônus probatório sobre a natureza da relação de trabalho, especialmente comprovar que não houve caracterização de vínculo de emprego na forma do art. 2.º e 3.º da CLT.

A manutenção da jurisprudência que faz presumir a existência de relação de emprego sempre que incontroversamente existente o trabalho humano representa reafirmação do compromisso constitucional alicerçado no próprio princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), em conjugação com a preservação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF/88), mirando-se na busca do pleno emprego, da preservação da função social da propriedade, bem como do compromisso constitucional de redução das desigualdades regionais e sociais e de tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (art. 170, incisos III, VII, VIII e IX da CF/88), enquanto bússolas das quais não pode se desapegar os caminhos da livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88) e da livre iniciativa. Efetivamente, a consolidação de uma justiça social está umbilicalmente atrelada à efetivação do valor trabalho e de seus princípios protetivos. (…) Se por um lado chegamos à era informacional, a um novo estágio de cooperação cognitiva entre os membros da sociedade, por outro lado vivenciamos uma acentuada concentração das riquezas geradas a partir deste próprio conhecimento, o que tem se processado a partir de uma visão utilitarista que mercantiliza o trabalho e instrumentaliza o ser humano.”

Motoristas e empresas de aplicativo de transporte – “Relação moderna de subordinação” – “Consenso no mundo civilizado”

“Pondere-se que a presunção de que o trabalho mediado por empresas que exploram plataformas eletrônicas não representa forma de trabalho autônomo, mas sim modalidade de trabalho prestado por hipossuficiente, a atrair aplicação de normas heterônomas protetivas (a exemplo das normas afetas ao vínculo de emprego), já representa praticamente um consenso do mundo civilizado. Recentemente, em 13 de setembro de 2021, o Tribunal Distrital de Amsterdã decidiu ação coletiva ajuizada pela Federação Nacional de Trabalhadores da Holanda (Federatie Nederlandse Vakbeweging – FNV) no sentido de que “na era tecnológica atual, o critério de “subordinação” tem sido interpretado de uma forma que se desvia do modelo clássico, de um modo de controle mais indireto (muitas vezes digital). Os empregados se tornaram mais independentes e realizam seu trabalho em momentos mais variados (auto-selecionados). Considera-se que, na relação entre a empresa e seus motoristas, existe esta “relação moderna de subordinação”.

https://uitspraken.rechtspraak.nl/inziendocument?id=ECLI:NL:RBAMS:2021:5029&showbutton=true (acesso em 23.09.2021).

Acrescentou que a decisão do Tribunal Distrital de Amsterdã está de acordo com o que decidiu outras Cortes Europeias, a exemplo da França, da Espanha, da Suíça. Registrou, enfim, que apesar de a reclamada não ter apresentado cópia do seu contrato de adesão, como lhe cabia, esse documento foi disponibilizado pela própria empresa em seu site na internet, pelo que se trata de informação notabilizada pela ré para conhecimento de todos, nos termos do artigo 374, inciso I, do CPC, razão pela qual o documento público foi considerado no julgamento da matéria de fundo.

Sobre a natureza da relação jurídica – Presença dos requisitos do vínculo de emprego.

Na sentença, o magistrado concluiu que a relação jurídica entre as partes se desenvolveu com a presença dos requisitos do vínculo de emprego, os quais foram analisados, um a um, pelo juiz. Confira:

Onerosidade – Segundo o prolator da decisão, para a aferição da existência desse pressuposto, torna-se preciso investigar se o objeto comercial da reclamada (faturamento) está restrito à exploração da tecnologia de aproximação virtual entre interessados em estabelecer uma relação bilateral (motorista e passageiro), ou se esta tecnologia passou a se mostrar acessória a um outro objetivo central, qual seja, o da exploração da mão de obra alheia. No primeiro caso, haveria uma relação de consumo, no segundo, a empresa operaria como uma verdadeira intermediadora de mão de obra que utiliza como técnica um aplicativo de smartphone, no estabelecimento de uma relação tripartite.

“Determinante para aferição desta realidade, assim, verificar a forma da empresa estabelecer preço e cobrar pelo uso do seu aplicativo. Caso a empresa efetivamente empreenda estritamente sobre o aplicativo, fazendo do mesmo uma ferramenta de preço estabelecido exclusivamente de acordo com seu uso (exemplo, caso cobre mensalidade do usuário para acessar o aplicativo), e não precificando o serviço de acordo com o uso do trabalho alheio, não haveria dúvida quanto à natureza consumerista da relação. Por outro lado, contudo, se a receita decorrente do uso do aplicativo estiver estabelecida diretamente de acordo e na proporção ao valor agregado a partir do exercício de trabalho humano alheio, fica nítido o escopo de lucrar a partir da intermediação de mão de obra, e não primariamente pela exploração da tecnologia. O valor da cessão de uso da ferramenta não pode estar atrelado diretamente ao valor agregado pelo exercício de trabalho alheio, pois este não pode ser coisificado, mercantilizado, e acaso o seja, impõe-se a incidência de uma rede de normas imperativas, ditadas pelo direito do trabalho.”, registrou o julgador.

Para o juiz, a verdade acerca da onerosidade transparece dos próprios termos da defesa. No aspecto, ressaltou na sentença:

“Ora, na medida em que se reconhece, em defesa, que é a “sistemática tecnológica que aumenta ou diminui o valor da corrida”, e não havendo nenhuma controvérsia nos autos quanto à circunstância da empresa reclamada ser a proprietária e controladora desta “sistemática tecnológica”, resta claro e evidente que o serviço de corrida viabilizado a partir da atividade do autor como motorista representa um trabalho cujo preço é integralmente gerido pela reclamada, sem qualquer possibilidade de intervenção por parte do autor, que não tem, assim, qualquer autonomia para definir o valor do serviço que executa”.

Na decisão, houve também referência ao contrato de adesão da empresa, o qual estabelece que os serviços por ela prestados “consistem na intermediação de corridas e facilitação de pagamento (“Intermediação”), mediante licenciamento e uso de software”. Foi também citado item que dispõe sobre o “Pagamento pelos serviços”, mencionando que “Licenciamento é feito a título gratuito, sendo que a Intermediação é prestada de maneira onerosa (“Remuneração pela Intermediação”)”.

“A empresa tem como objetivo comercial a intermediação de corridas, extraindo seu faturamento a partir da intermediação do pagamento deste serviço, figurando o software como mero meio para atingir este escopo comercial”, destacou o juiz.

“Resta evidente, assim, que software representa meio de consecução do objeto comercial, e não o objeto comercial em si, pelo que reconhecendo a ré que faz intermediação de serviço e de correlato pagamento ao trabalhador, inquestionavelmente se faz presente o elemento fático jurídico da onerosidade”, concluiu.

Quanto ao valor médio do ganho mensal, foi reconhecida a importância informada pelo motorista (R$ 2 mil mensais), tendo em vista que reclamada não cuidou de apresentar aos autos os comprovantes de pagamento, ou mesmo os relatórios indicativos dos valores das corridas com a discriminação da comissão atribuída ao motorista.

Habitualidade – Segundo observou o magistrado, a prestação de serviços do autor ocorria de forma não eventual, ou seja, com habitualidade. Sobre esse pressuposto, pontuou o julgador:

“Efetivamente, assim, como reconhece a ré, o ambiente propício para a fertilização desta prática de rentismo incidente sobre a intermediação de mão de obra por plataforma eletrônica tira proveito do próprio contexto de enfraquecimento de direitos sociais, na medida em que, como bem observa Supiot, a insegurança econômica dos trabalhadores e sua exposição ao risco são os motores de sua produtividade e de sua criatividade41. Tira-se proveito da realidade de desemprego e de miséria gerada a partir da própria premissa de mercantilização do valor trabalho. O desemprego e a sobre oferta de mão de obra garantem, no plano coletivo, aquilo que anteriormente era objeto dos contratos de trabalho, enquanto obrigação individual do trabalhador, ou seja, a manutenção habitual de mão de obra à disposição daquele que a explora. A condição de coletivo de trabalhadores que se fortaleceria em rede de solidariedade perde espaço para o coletivo de desempregados que concorrem, entre si, na sujeição à precariedade, para conseguirem obter a oportunidade de trabalho que lhes permita, quando muito, a sobrevivência, mas não uma vida digna.

Trabalho representa fonte de subsistência, o que relativiza a noção de “liberdade para o trabalho”, enquanto idealidade suposta pela ré, em defesa, ao sustentar que quanto ao requisito da habitualidade, este igualmente não está presente vez que o Reclamante poderia administrar seu tempo da forma que lhe fosse interessante, utilizar ou não a plataforma, utilizar outros aplicativos como o Uber, por exemplo ou, ainda, trabalhar em outro local e utilizar a plataforma para complementar seus rendimentos, ou seja, as possibilidades são infinitas, dependendo do interesse do contratante, aqui no caso o Reclamante.

Dentro do sistema capitalista, a necessidade de trabalhar sempre representará um imperativo que antecede a liberdade para o trabalho, e a gestão algorítmica viabilizada pela plataforma dotada de IA representa ferramenta de potente indução comportamental para manter o motorista logado em jornadas até mesmo superiores aos limites celetistas, fazendo-se uso de recursos similares aos estímulos de redes sociais e de tantas outras ferramentas substanciadas no aprendizado de máquina.”

Há que se registrar, ainda, que a circunstância das partes ajustarem a possibilidade de recusa de serviços por empregado não representa, por si só, circunstância obstativa da existência de vínculo de emprego, seja porque o artigo 444 da CLT estabelece que “as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho”, seja porque a própria modalidade legal de contrato de emprego intermitente, prevista no artigo 443 parágrafo 3o da CLT prevê que considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses.

[…]

“No mesmo sentido, o documento juntado demonstra que a ré conta com relatórios gerenciais indicativos de todas as corridas realizadas pelo autor, com indicação de horário de início e término de cada viagem, além de local de embarque e desembarque, pelo que competia à ré carrear todos os mencionados relatórios aos autos, de forma a demonstrar a alegada ausência de habitualidade nos serviços prestados pelo autor (fato impeditivo), ônus do qual não se desincumbiu.

Enfim, há que se ressaltar que o contrato de adesão colocado em notoriedade pela ré em seu site (artigo 374, I, do CPC) traz previsão no sentido de que a empresa poderá aplicar multa, suspender ou cancelar a utilização de serviços na hipótese, dentre outras, de se verificar “inatividade da conta por um longo período de tempo.”

Pessoalidade – O julgador não teve dúvida de que havia pessoalidade na prestação de serviços pelo reclamante. Ressaltou que a empresa reconhece que efetua cadastramento pessoal de seus motoristas, alegando, inclusive, que o cadastro individual é obrigatório para todas as empresas de tecnologia, de forma a garantir a segurança e a confiabilidade de todos os usuários.

Citou o contrato de adesão disponibilizado pela reclamada em seu site na internet e que prevê que a empresa pode aceitar ou recursar a solicitação de cadastro do motorista, realizar checagem de seus antecedentes criminais e ainda que o perfil do “motorista parceiro é exclusivo e intransferível” e que ele não pode compartilhar sua conta com terceiros ou transferi-la, sob pena de cancelamento imediato da conta” (itens 3.2 e 3.3 do contrato de adesão).

Subordinação – Na análise do magistrado, o trabalho prestado pelo autor estava plenamente integrado à dinâmica empresarial, a caracterizar modalidade de subordinação estrutural, e mais especificamente, no presente caso, uma subordinação algorítmica.

Conforme constatou o juiz, a reclamada conta com recursos próprios à “deep lerning” (aprendizagem profunda), tendo reconhecido, em defesa, que a plataforma promove “conjugação de fatores como a oferta e a procura do mercado em determinados horários e ocasiões, que levam à fixação de valores de acordo com a demanda perpetrada pelos passageiros”.

“O grande diferencial do algoritmo de aprendizagem profunda processado pela reclamada está na sua capacidade preditiva, predição esta decorrente da identificação de padrões em dados digitais com emprego de técnica de generalização”, frisou o magistrado. Explicou que a ré estabelece padrões a partir de dados disponibilizados pela totalidade dos usuários , o fazendo em diversas frentes, o que lhe permite promover a predição: 1) do valor ideal para cada corrida solicitada, considerando-se como ideal aquele mais apto a ser aceito pelo cliente e pelo motorista e que mais rentabiliza para a ré; 2) da melhor rota a ser utilizado pelo motorista; 3) do sistema de incentivo (premiação, bônus, etc.) mais eficiente para que o motorista permaneça habitualmente logado à plataforma.

Acrescentou que, dentro desse modelo de plataforma da ré, “sobressai a modelagem que trata da atribuição de notas em decorrência da qualidade de serviços, avaliação feita tanto por motoristas quanto pela própria empresa, na medida em que o item 6.3 do contrato de adesão prevê que o Motorista Parceiro aceita que a empresa manterá registros internos acerca da prestação de Serviços de Transporte, tais como a taxa de aceitação e cancelamento de corridas, podendo utilizar esses dados para realizar sua própria avaliação sobre o Motorista Parceiro”.

Para o juiz, desta “’gamificação’ por atribuição de pontos e recompensas”, exsurge grande poder disciplinar a configurar a subordinação do motorista ao empreendimento. Citou, como exemplo, item do contrato de adesão, onde está previsto que: “ o Motorista Parceiro reconhece e aceita que a empresa poderá”: suspender por tempo indeterminado o Licenciamento (e, consequentemente, a Conta do Motorista Parceiro); exigir a realização de curso de reciclagem, caso o Motorista Parceiro apresente avaliações semanais reiteradamente ruins, a exclusivo critério da empresa; e aplicar multa ao motorista.

Além disso, no caso, não houve discussão quanto ao fato de que a reclamada fez uso do seu poder diretivo para fazer o desligamento do reclamante de sua plataforma eletrônica, inclusive justificando que isso decorreria de problema de conduta do motorista, o que, de acordo com o julgador, vem a materializar o exercício do poder disciplinar.

A empresa terá que registrar o contrato na carteira de trabalho do autor, na função de motorista e com salário mensal estimado em R$ 2 mil. Por identificar hipótese de fraude trabalhista com repercussão coletiva, o magistrado determinou a expedição de ofícios ao MPT e à Superintendência Regional de Trabalho e Emprego com cópia da sentença.

Em grau de recurso, os julgadores da 11ª Turma do TRT-MG mantiveram a sentença.

TRT/MG: Controladora de acesso que não dispunha de assento no local de trabalho e não fazia pausas será indenizada

A Justiça do Trabalho deferiu indenização por danos morais de R$ 2 mil a uma trabalhadora que atuava como “controladora de acesso” em um shopping localizado na região sul da capital mineira. Ela fazia o monitoramento das pessoas que entravam no shopping, como, por exemplo, medição de temperatura e fiscalização sobre o uso de máscaras, conforme exigências das normas sanitárias vigentes no período da pandemia da Covid-19. No entanto, ficou provado que a estrutura de trabalho era precária e não oferecia à ex-empregada condições de fazer pausas para descanso, alimentação ou mesmo ir ao banheiro.

A sentença é da juíza Silene Cunha de Oliveira, titular da 26ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. A magistrada constatou a negligência da empregadora quanto ao fornecimento de assento aos controladores de acesso, além da falta de substituição por colega quando se fizesse necessário.

Na ação que ajuizou contra a empregadora e o shopping center, a controladora de acesso afirmou que era constantemente humilhada em seu local de trabalho, dizendo que era obrigada a ficar de pé por mais de nove horas diárias e não lhe era permitido ir ao banheiro ou tomar água, sendo obrigada a aguardar horas para que alguém a substituísse para que pudesse fazer uma pausa. Os réus se defenderam afirmando que sempre havia banheiros disponíveis e boas condições de trabalho para os empregados.

Conversas por aplicativo de mensagens e a dificuldade de “rendição” para as pausas – Mas, em conversas via aplicativo de mensagens, foi confirmado que, de fato, não havia cadeira no posto de trabalho. Chamou a atenção da magistrada conversa ocorrida entre a autora e os colegas, em que ela relata que está “passando mal” e os colegas falam que reivindicaram do supervisor, sem sucesso, uma cadeira no posto de trabalho.

Com relação à substituição para que os controladores de acesso pudessem ir ao banheiro e beber água, a julgadora observou que havia uma certa distribuição, “ainda que precária”, quanto ao posto que cada “controlador” iria assumir, existindo um que ficava “no rendimento”.

Prova testemunhal: “Não podia sair para beber água ou ir ao banheiro”; “algumas passavam mal” – Entretanto, a prova testemunhal demonstrou que a substituição dos controladores deveria ser feita por alguém da equipe e, como não havia pessoal suficiente, poderia ser realizada por bombeiro do shopping, o qual, por ter outras funções, muitas vezes, não podia parar para render o controlador. Testemunha ouvida chegou a relatar: “que não podia sair para beber água ou ir ao banheiro; que podiam pedir ao segurança, mas ele não podia ficar, e quando não tinha quem substituísse não podiam sair”. Contou ainda que “a maioria da equipe passou mal por falta de alimentação e de água, que não podiam assentar, que não tinham comunicação com a empresa, mandavam mensagens umas paras as outras no celular e o supervisor não ficava no shopping”.

Precariedade nas condições de trabalho – Danos morais – De acordo com a juíza, a precariedade das condições de trabalho ofertadas pelas empresas caracteriza conduta ilícita, em ofensa ao direito à saúde, à higiene e à segurança do trabalhador, garantias fundamentais asseguradas na Constituição Federal. Na visão da julgadora, ficou evidente que a reclamante trabalhou em condições inadequadas, com afronta ao mínimo exigido para satisfação da dignidade da pessoa humana. (artigo 1º, inciso III, da Constituição).

A magistrada identificou, no caso, os pressupostos para estabelecer o dever de indenizar, tendo em vista a prova do ato injurídico decorrente de dolo/culpa por parte da empregadora, do qual se conclui pelos danos morais sofridos pela reclamante.

Valor da indenização – Ao fixar a indenização no valor de R$ 2 mil, a magistrada levou em conta diversos aspectos envolvendo o caso concreto, como a natureza do bem jurídico tutelado, a intensidade do sofrimento e a possibilidade de superação física/psicológica da trabalhadora, os reflexos pessoais e sociais da ação/omissão das empresas, a extensão e a duração dos efeitos da ofensa, as condições em que ocorreram as ofensas, o grau de dolo ou culpa dos réus, a ausência de ocorrência de retratação espontânea ou de comprovação de esforço efetivo para minimizar a ofensa, a ausência de perdão, tácito ou expresso, a situação social e econômica das partes envolvidas, bem como o grau de publicidade da ofensa. Tudo na forma do artigo 223-G, da CLT, incluído pela Lei nº 13.467, de 2017.

Responsabilidade subsidiária do shopping – A autora era empregada de uma empresa que prestava serviços ao centro comercial. Na qualidade de tomador dos serviços, o shopping foi condenado de forma subsidiária, sendo a empregadora de forma principal, pelo pagamento da indenização por danos morais e também por direitos trabalhistas descumpridos. Entre estes, horas extras decorrentes da jornada das 12h às 22 horas, de terça a domingo, remuneração dobrada pelo trabalho em domingos e feriados e, ainda, a remuneração pelo tempo de intervalo intrajornada não respeitado. Em grau de recurso, os julgadores da Sexta Turma do TRT-MG mantiveram a sentença nesse aspecto.

Processo n° 0010087-50.2021.5.03.0105

TRT/MG anula penhora de apartamento vendido de boa-fé pelo devedor a terceiros

A Justiça do Trabalho determinou a anulação da penhora de um apartamento que havia sido adquirido de boa-fé por terceiros, antes mesmo do ajuizamento da ação trabalhista, contra o devedor e antigo proprietário. Ao serem notificados da penhora do imóvel, eles apresentaram embargos de terceiro, que foram acolhidos pela juíza Clarice dos Santos Castro, titular da 30ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Os embargos de terceiro são apresentados por pessoas que, embora não sejam parte no processo de execução, possuem interesse jurídico na causa. No processo trabalhista, em geral, o terceiro embargante tenta provar que o bem penhorado lhe pertence e, alegando não ser ele o devedor, pede a anulação da penhora.

Ao decidir o caso, a magistrada observou que o apartamento foi vendido aos embargantes pela devedora do crédito trabalhista, uma construtora. Foi estipulado o preço de R$ 1 milhão e o negócio foi efetivado por meio de contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel. Ocorre que o contrato foi assinado anteriormente ao início da ação trabalhista movida contra a construtora, o que foi considerado essencial pela juíza para confirmar a boa-fé dos adquirentes.

Apesar de o contrato não ter sido registrado em cartório de registro de imóveis, a magistrada ressaltou que a jurisprudência já se firmou no sentido de que apenas o instrumento particular de compra e venda é suficiente para demonstrar a boa-fé dos contratantes na alienação de imóvel, o que está de acordo com o entendimento consubstanciado na Súmula 84 do STJ.

Na sentença, também foi pontuado que o Tribunal Regional do Trabalho tem decidido nesse sentido, sendo, inclusive, citado o seguinte aresto jurisprudencial:

“AGRAVO DE PETIÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. POSSUIDOR DE BOA FÉ. PENHORA. A orientação contida na Súmula nº 84 do STJ tem como escopo a proteção do direito de terceiro que tem a posse mansa, pacífica e de boa-fé decorrente de compromisso ou contrato de promessa de compra e venda de imóvel não registrado no Cartório de Registro Imobiliário, atenuando a regra geral estabelecida pelo artigo 1245, parágrafo primeiro, do Código Civil, segundo o qual a transmissão da propriedade imóvel somente se aperfeiçoa com o registro imobiliário do título translativo. Outrossim, o registro do contrato de promessa de compra e venda de imóvel constitui apenas o meio próprio de dar publicidade ao ato, sendo necessário apenas para fins de oponibilidade em face de terceiros, consoante dispõe o artigo 221 do Código Civil. Neste contexto, comprovando-se a posse mansa, pacífica e de boa-fé pelo terceiro adquirente, ainda que não formalizada, em momento bem anterior ao ajuizamento da ação trabalhista, impõe-se afastar a hipótese de fraude à execução.” (TRT da 3.ª Região; PJe: 0010608-97.2015.5.03.0042 (AP); Disponibilização: 09/03/2018, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 1130; Órgão Julgador: Quinta Turma; Relator: Júlio Bernardo do Carmo).

Contribuiu para o entendimento adotado na sentença a constatação de que os embargantes se mostraram atentos aos cuidados e manutenção do imóvel, assumindo as obrigações que lhes cabiam, tais como o pagamento de contas de luz e despesas com condomínio, conforme documentos que apresentaram. Para a julgadora, a conduta dos embargantes deixou nítida a boa-fé na aquisição, bem como o exercício de posse mansa e pacífica.

Além disso, a magistrada observou que o trabalhador e credor da dívida em execução não apresentou elementos suficientes para afastar a presunção de validade do ato jurídico, ou demonstrar que os embargantes agiram de má-fé com o objetivo de praticar fraude. Não cabe mais recurso da decisão. O processo já foi arquivado definitivamente.

Processo n° 0010347-18.2021.5.03.0109

TRT/MG remete à Justiça Federal processo sobre manutenção de plano de saúde não regulado por contrato de trabalho ou norma coletiva

Os julgadores da 11ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais confirmaram sentença que declarou a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar ações que envolvem plano de saúde não regulado por contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo. Por unanimidade, os desembargadores acolheram o entendimento do relator, então juiz convocado Vicente de Paula Maciel Júnior, que negou provimento ao recurso da trabalhadora, para manter a sentença oriunda da 32ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, no aspecto.

A decisão se baseou em tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) proposto no Recurso Especial n° 1799343/SP, o qual resultou no Tema – IAC nº 5, nos seguintes termos: “Compete à Justiça comum julgar as demandas relativas a plano de saúde de autogestão empresarial, exceto quando o benefício for regulado em contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo, hipótese em que a competência será da Justiça do Trabalho, ainda que figure como parte trabalhador aposentado ou dependente do trabalhador”.

Segundo constatou o relator, a discussão travada na ação trabalhista girava em torno, justamente, de plano de saúde não operado pela empregadora, cujas cláusulas e condições não estavam reguladas pelo contrato de trabalho ou por norma coletiva. Nesse cenário, concluiu-se que, com fundamento no IAC nº 5 do Superior Tribunal de Justiça, a competência para processar e julgar a ação é da Justiça Comum.

Entenda o caso – A reclamante pedia a manutenção do plano de saúde que era usufruído por ela e seus dependentes em decorrência de ajuste contratual entre a antiga empregadora e a empresa operadora do plano. Disse que, depois 45 anos de contribuição, foi surpreendida com comunicação da antiga empregadora informando a rescisão unilateral do convênio por parte da empresa administradora do benefício. Pretendia que as rés fossem condenadas a manter sua condição de beneficiária do plano, assim como de seus dependentes. Apontou que o benefício do plano de saúde fora instituído por meio de acordo coletivo de trabalho, de forma que a competência para o julgamento da demanda seria da Justiça do Trabalho, conforme entendimento do STJ no Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 5.

Na decisão, o relator ressaltou que, a princípio, a matéria seria de competência da Justiça do Trabalho, nos termos do artigo 114, inciso IX, da Constituição, por se tratar de benefício decorrente de contrato de trabalho. Ocorre que, segundo observou o julgador, tendo em vista a tese firmada no IAC nº 5 do STJ, a competência da Justiça do Trabalho se restringe às hipóteses em que o plano de saúde de autogestão empresarial é regulado em contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo.

Entretanto, no caso, segundo o apurado, não se tratava de plano de saúde de autogestão empresarial, porque não era operado pela empregadora, mas por empresa contratada. Além disso, o benefício não era regulado pelo contrato de trabalho ou por norma coletiva. “O acordo coletivo não regula o plano de saúde da autora, mas, sim, estabelece critérios para a manutenção do convênio de assistência médica para todos os empregados”, destacou o julgador na decisão.

Houve a apresentação de documentos consistentes de regulamentação do plano de saúde que, contudo, não alteraram a conclusão do relator, por não terem demonstrado que a regulamentação ocorreu por meio do contrato de trabalho ou por norma coletiva.

Para reforçar os fundamentos da decisão, o relator citou, no mesmo sentido do entendimento adotado, julgamentos anteriores proferidos pelos julgadores da Turma revisora. Com base na nova compreensão da jurisprudência sobre a matéria, manteve-se a decisão de 1º grau, que reconheceu a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a ação e determinou a remessa do processo ao cartório distribuidor da Justiça Comum Federal, Seção Judiciária de Belo Horizonte/MG.

Processo n° 0010103-83.2021.5.03.0111

TRT/MG considera a gravidade do dano mais relevante do que o porte da empresa para majorar valor de indenização

“Mesmo quando o empregador é empresa de grande porte, a indenização não pode ser fixada em valor incompatível com a gravidade do dano infligido ao trabalhador”. Assim se manifestaram os julgadores da Segunda Turma do TRT de Minas, acompanhando voto da juíza convocada Sabrina de Faria Fróes Leão, ao rejeitarem recurso de trabalhador que não se conformava com o valor fixado na sentença para indenização por danos morais por precariedade de condições de trabalho.

Na ação, o trabalhador, que atuou como coletor de lixo, relatou que não havia banheiros no local de trabalho, tendo que utilizar vias públicas, improvisar locais e pedir a comerciantes para usar o banheiro. Alegou ainda que não era disponibilizada água para os empregados, que tinham que providenciar garrafas para levarem nos caminhões. O cenário foi confirmado por testemunhas, que acrescentaram que, por vezes, ocorria de comerciantes não autorizarem o uso do banheiro.

Na sentença, o juízo da 38ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte reconheceu que a precariedade da infraestrutura no ambiente de trabalho, como ocorreu no caso, implica ofensa direta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. Foi reconhecido que a reclamada praticou conduta ilícita, nos termos dos artigos 186 e 187 do Código Civil. Para o julgador, a empregadora foi negligente, caracterizando-se o ato ilícito, bem como o dano causado ao trabalhador. Diante dos fatos vivenciados pelo empregado, condenou a empresa a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 2 mil.

Mas o ex-empregado não se conformou com o valor arbitrado. Ao pedir a majoração da indenização, em recurso, alegou que valor mais elevado atenderia melhor à função pedagógica da condenação uma vez que a empresa é concessionária de serviço público e reforçou que os sanitários, quando existentes, eram precários.

Contudo, a relatora entendeu que o porte da empresa não interfere no valor da indenização. Segundo ela, ainda que se trate de empresa de grande porte, deve-se ter em vista o nível de gravidade do dano causado ao trabalhador. Nas palavras da relatora, “a reparação não tem como objetivo outorgar vantagem indevida ao ofendido, mas apenas compensar, da maneira possível, pela retribuição pecuniária, a ofensa que lhe foi causada, segundo o prudente critério do Juiz”.

A relatora ainda ponderou que o juiz de primeiro grau é quem melhor pode avaliar as repercussões da ofensa e a necessidade e adequação dos limites da condenação, pois teve contato pessoal com as partes e testemunhas. E, no caso, entendeu não existir razão de fato ou de direito para alterar o valor da indenização arbitrado em primeiro grau.

Por unanimidade, o colegiado acompanhou o entendimento da relatora, para negar provimento ao recurso. Desse modo, ficou mantido o valor de R$ 2 mil fixado para a indenização concedida ao trabalhador.

Processo n° 0010062-69.2020.5.03.0138.

TRF1: Magistrado não está impedido de atuar em processo que tem como parte a instituição de ensino na qual exerce magistério como concursado

A 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) julgou prejudicado o incidente de impedimento de um juiz federal sob o argumento de que não poderia atuar no processamento e julgamento de uma ação em face da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), da qual integra o corpo docente.

Ao analisar o incidente, o relator, juiz federal convocado Ilan Presser, explicou que, a teor do art. 144, VII do Código de Processo Civil (CPC), há impedimento do juiz em exercer suas funções em processo em que figure como parte instituição de ensino com a qual tenha relação de emprego ou decorrente de contrato de prestação de serviços.

Todavia, no caso do processo analisado, destacou o relator que o magistrado é professor concursado da UFU, tendo, portanto, vínculo estatutário de natureza estável com a universidade.

Frisou o relator que, nos termos da legislação em vigor e a jurisprudência do TRF1, a atuação como docente com vínculo estável não configura impedimento para a atuação do magistrado no processamento da ação.

O juiz federal concluiu o voto com a verificação de que, em que pese a inocorrência do impedimento suscitado, a sentença foi proferida por juiz diverso daquele contra quem se argui a suspeição, restando prejudicado o incidente (ou seja, não será julgado o mérito do incidente, a questão principal), conforme entendimento da jurisprudência do TRF1 sobre o tema.

A decisão do colegiado, nos termos do voto do relator, foi unânime.

Processo n° 1010708-34.2017.4.01.0000

TRT/MG: Família de trabalhador morto após queda de barranco receberá R$ 150 mil de indenização

O relator reconheceu culpa concorrente das partes e, por isso, reduziu em 40% o valor da condenação arbitrada no 1º grau.


Uma construtora de Belo Horizonte do ramo de obras de saneamento básico foi condenada ao pagamento indenização por danos morais à família de um ex-empregado que morreu após um barranco cair em cima dele durante o reparo de uma rede de esgoto na cidade de Córrego Fundo. Os julgadores da Segunda Turma do TRT-MG mantiveram, por unanimidade, a condenação proferida pelo juízo da Vara do Trabalho de Ribeirão das Neves, reduzindo de R$ 250 mil para R$ 150 mil o valor da indenização. A prefeitura daquela cidade e a SAAE – Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Córrego Fundo, tomadoras do serviço, também foram condenadas e responderão solidariamente pelo pagamento da reparação por danos morais.

O acidente ocorreu no dia 18 junho 2018. Pelo laudo técnico do Ministério do Trabalho, o soterramento aconteceu após o ex-empregado entrar numa vala para a avaliação de uma rede de esgoto. Como o local não tinha escoramento, um bloco de terra do barranco se soltou, atingindo o tórax do trabalhador, que morreu no próprio local. O profissional era encarregado de obra. A esposa e os filhos do trabalhador acionaram a Justiça do Trabalho.

Testemunha – O operador de máquinas, que estava abrindo a vala, confirmou que, no dia do acidente, não foram colocadas escoras no local. Segundo ele, o engenheiro responsável chegou a pedir a colocação dos equipamentos, já que a vala ficaria funda com a escavação. “Mas a vítima se recusou a colocar as escoras, argumentado que não era necessária a instalação”, disse.

Decisão – Para o desembargador relator, Sebastião Geraldo de Oliveira, ficou evidenciado que, antes da ocorrência do infortúnio, os responsáveis pela obra não adotaram as medidas de segurança necessárias para evitar o acidente. O julgador ressaltou que houve afronta ao disposto no artigo 173 da CLT, que estabelece que “as aberturas nos pisos e paredes serão protegidas de forma que impeçam a queda de pessoas ou de objetos”. Segundo o desembargador, houve também violação às normas previstas no item 18.6 da NR-18, da Portaria n. 3.214/78, do Ministério do Trabalho, e relativas às escavações.

O magistrado salientou que competia aos responsáveis pela obra a adoção de medidas adequadas para eliminar ou reduzir os riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. “No entanto, diante do conjunto probatório, o que emerge é que, além de não ter oferecido treinamentos e orientações, eles não providenciaram o escoramento da vala, tendo sido negligentes quanto à observância das normas de segurança capazes de evitar o infortúnio”, concluiu.

Culpa concorrente – Segundo o julgador, a prova testemunhal indicou a culpa concorrente do falecido trabalhador, pois, embora advertido pelo engenheiro, considerou desnecessário realizar escoramento da vala. “A culpa concorrente da vítima, contudo, não exclui a responsabilidade civil dos reclamados. A esse respeito, é maior o quinhão de culpa da empregadora, porque, na relação de emprego, o trabalhador atua de forma subordinada, com limitado espaço para se insurgir contra os comandos patronais”, ressaltou.

No entendimento do magistrado, o falecido era um encarregado de obras experiente, tinha condições de aferir as medidas de segurança para execução dos trabalhos e acabou sendo vítima de acidente fatal em face da inexistência de escoramento da vala. “Considerando a ponderação entre a conduta do falecido e a não observância pelos reclamados das medidas de segurança necessárias, declaro a existência de culpa concorrente na proporção de 40% em relação à vítima e de 60% quanto aos empregadores, porque era obrigação do engenheiro que detém conhecimento técnico impedir a conduta imprudente da vítima”, concluiu o julgador.

Assim, levando em conta a gravidade do acidente, os valores fixados pelos julgadores da Segunda Turma em outros casos e a culpa concorrente das partes, o relator entendeu que o valor da indenização por danos morais, fixado na origem em R$ 250 mil, merece ser reduzido em 40%, ou seja, para R$ 150 mil. O desembargador aceitou ainda parcialmente o recurso patronal para reduzir em 40% a indenização fixada na origem a título de pensão mensal. Atualmente, há recurso da decisão aguardando julgamento no TST.

Processo n° 0010796-84.2018.5.03.0107


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