André L. Borges Netto
CONSULTA
O Sr. Procurador-Geral do Estado, Dr. Wilson Vieira Loubet, em correspondência datada de 11.02.2000 (OF/PGE/GAB/Nº 058/2000), solicita nossa opinião sobre a possibilidade de mudança do nome do Estado, algo que envolve o tema jurídico da competência legislativa estadual.
Recebemos cópia do Parecer PGE/GAB nº 005/2000, em que se conclui ser “juridicamente possível a modificação da denominação do Estado para ‘Estado do Pantanal’, devendo tal modificação ser realizada mediante emenda à Constituição Estadual, que poderá ter seu processo iniciado por remessa de projeto pelo Governador do Estado à Assembléia Legislativa ou por qualquer um dos parlamentares, dispensando-se a convocação de plebiscito ou referendo, já que a consulta popular, neste caso, é questão meramente política” (f. 19).
Ficou esclarecido que se tem a maior urgência em posicionar-se perante essa questão, em face do curto prazo de que dispõe para enviar resposta ao Exmo. Sr. Governador do Estado, o que nos leva a enfrentar o tema de modo abreviado, não sem antes dizer que no futuro, sendo isto necessário, o estudo poderá ser complementado.
PARECER
O que se pretende é obter resposta quanto à competência legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul para alterar, por ato próprio, via Emenda à Constituição local, sua denominação, passando a se chamar “ESTADO DO PANTANAL” .
Em obra que publicamos (“Competências Legislativas dos Estados-membros”, Ed. RT, 1999), o tema foi escandido de forma ampla e detalhada, sendo estudadas todas as faixas de competências legislativas que podem ser desenvolvidas por ato do Parlamento estadual, todas extraídas da Constituição Federal, a saber: competência constituinte (art. 25 da parte permanente e art. 11 do ADCT), competência residual (§ 1º do art. 25), competência concorrente (art. 24), competência delegada (parágrafo único do art. 22), competências privativas e competências implícitas. A resposta buscada demanda a análise apenas das competências CONSTITUINTE e RESIDUAL, além de outras questões de natureza constitucional, tal como segue.
É de sabença comum que o legislador constituinte originário de 1988 trabalhou, desde as primeiras discussões quanto à elaboração da nova Constituição Federal, com a idéia — que era firme e que estava presente em todas as grandes discussões sobre o rumo que deveria tomar a Nação — de que o federalismo deveria ser reformulado, principalmente quanto ao aspecto da distribuição de competências legislativas, para que se fortalecessem os Estados-membros e os Municípios, descentralizando-se o exercício do poder político, que estava em maior número nas mãos da União.
Este compromisso foi assumido publicamente pelos políticos integrantes do movimento da Aliança Democrática, divulgado em 7 de agosto de 1984, sendo que, dentre as inúmeras manifestações dos ideais políticos do momento, encontrava-se a idéia do “fortalecimento da Federação e efetiva autonomia política e financeira dos Estados e Municípios” (PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, “História Constitucional do Brasil”, Ed. Paz e Terra, 3ª ed., p. 802).
Estamos a ressaltar este aspecto histórico em razão da necessidade de ser dado um tratamento amplo ao PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA DOS ESTADOS-MEMBROS (art. 18 da CF/88), dado que não se pode falar em entidade que compõe a federação brasileira sem recordar que a autonomia é a sua principal característica, a ponto de os publicistas definirem os Estados-membros como “corporações territoriais dotadas de autonomia constitucional dentro dos limites assegurados pela Constituição Federal, ao qual se assegura o direito à integridade territorial, o poder de participar da formação do governo nacional e o exercício dos poderes residuais ou remanescentes” (PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, Ed. Saraiva, v. 2, p. 122).
A análise correta do tema proposto implica em que se retenha na memória esta idéia central da discussão do federalismo pela Assembléia Nacional Constituinte, no sentido de que se pretendeu, efetivamente, dotar os Estados-membros de um somatório maior de competências legislativas, permitindo-se que, por ato próprio, os assuntos regionais ou de interesse marcadamente estaduais viessem a ser tratados diretamente pela Assembléia Legislativa Estadual, sem interferência da ordem jurídica central.
Fato é que se extrai desta autonomia constitucional o poder político pertencente ao Estado-membro para deliberar sobre as questões puramente locais, tendo e exercendo o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, sem outras limitações, além das que forem postas na Constituição Federal.
Convém ressaltar que o tema das competências legislativas é de grande importância para a própria existência do federalismo enquanto forma de Estado, porquanto não se concebe a idéia de um Estado Federal onde as entidades federadas não possuam a faculdade de criar atos normativos para incidir sobre a conduta daqueles que se encontrem sob o seu território.
Aliás, o cerne, o núcleo, a própria razão de ser do Estado Federal reside na repartição constitucional de competências legislativas, onde diferentes níveis de governo ou de centros decisórios são dotados do poder jurídico, delegado pela Constituição, de emitir, criar ou editar as normas jurídicas necessárias para controlar a conduta humana em determinado espaço territorial, no nosso caso nos territórios dos Estados-membros.
A circunstância de os Estados-membros serem dotados da capacidade de inovar o ordenamento jurídico, mediante a emissão de atos normativos, é demonstração cabal da autonomia constitucional de que são detentores, na medida em que passam a regular seus assuntos internos ou de seu peculiar interesse independentemente da vontade das outras entidades federadas.
Como temos por certo que a autonomia (poder de dar a si mesmo a lei reguladora da própria conduta ou poder de autodeterminação exercitável de modo independente dentro de limites traçados pela lei estatal superior) é o elemento que melhor caracteriza a existência dos Estados-membros perante nosso regime jurídico, não poderia mesmo o constituinte nacional ter deixado de elencar expressamente as competências que possuem os Estados-membros de editarem suas Constituições locais, pois é por intermédio delas que se estruturam os órgãos e repartições públicas locais, além de inúmeras questões do interesse peculiar dessas comunidades regionais, sempre observando os princípios estabelecidos na Constituição Federal.
Por outra retórica, elemento caracterizador do Estado-membro de um Estado Federal é a sua autonomia, sendo indisputável, conforme se vê da formosa lição de ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ (“Poder Constituinte do Estado-Membro”, Ed. RT, p. 54), que “o primeiro conteúdo dessa autonomia, é, assim, a auto-organização, ou seja, a capacidade de que é dotada a unidade federada de dar-se uma organização que descanse sobre suas próprias leis, isto é, sobre leis que não extraiam seu valor jurídico de nenhuma outra autoridade. Vale dizer, o primeiro elemento da autonomia estadual é a capacidade atribuída à unidade federada para dar-se uma Constituição particular”.
Ora, parece fora de qualquer dúvida que auto-organizar o Estado-membro via Constituição Estadual significa, acima de tudo, FIXAR O NOME OU A DENOMINAÇÃO DESTA UNIDADE FEDERADA, DADO QUE DIFICILMENTE SE ENCONTRARÁ TEMA MAIS INTIMAMENTE LIGADO À AUTONOMIA LOCAL DO QUE ESTE.
Pertence ao Estado-membro a competência para deliberar legislativamente sobre o tema de sua denominação, somente a ele cabendo o poder-dever de tratar normativamente sobre este assunto. Análise em contrário não estaria levando em conta a efetiva reformulação do federalismo pátrio (com a distribuição de um maior número de competências legislativas aos Estados-membros e Municípios), desviando-se, ainda, do conceito a ser dado à competência constituinte estadual.
Seria mesmo muito estranho verificar o Congresso Nacional tratando de assunto tão ligado ao interesse da comunidade local, sem nenhum relevo para a comunidade dos demais Estados-membros e sem nenhuma vinculação lógica com o interesse nacional.
O que ocorreu com a Lei Complementar nº 31/77, que criou o nosso Estado, foi apenas um ato formal de desmembramento territorial, tendo sido adotada a denominação que prevaleceu naquele período, sem que isto implique na necessidade de outra Lei Complementar Nacional deliberar sobre o assunto.
Quanto a este aspecto, entendemos que o tema foi suficientemente enfrentado pelo Dr. Wilson Vieira Loubet, que destacou uma verdade que até hoje ninguém teve a ousadia de refutar, qual seja: não existe hierarquia jurídica entre a legislação nacional e a legislação estadual, não se devendo levar em conta a questão da hierarquia para solucionar eventual e aparente conflito de normas federais e estaduais, devendo-se, em boa verdade, apenas extrair do Texto Constitucional a regra de competência legislativa.
Não se deixe de reconhecer, também, que a Lei Complementar nº 31/77, na parte em que tratou da denominação do novo Estado-membro desmembrado do Mato Grosso, está com sua eficácia SUSPENSA, dado que posteriormente surgiu a Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul (05.10.89) que passou a tratar deste assunto (denominação do Estado) e de outros assuntos de natureza tipicamente constitucional, verificando-se aqui o mesmo fenômeno jurídico que sempre ocorre quando, no âmbito da legislação concorrente (art. 24 da CF/88), os Estados-membros editam leis veiculadoras de normas gerais e de normas específicas ou particularizantes, sendo certo que aquelas (as normas gerais) ficam com sua eficácia suspensa com o advento da lei federal sobre o mesmo assunto (§§ 3º e 4º do art. 24 da CF/88).
Além de ser muito claro que por intermédio da competência constituinte o Estado-membro pode legislar ampla e ilimitadamente sobre a alteração de sua denominação (porque este é assunto que deve mesmo ser objeto da competência constituinte estadual), outra competência extraída diretamente da Constituição Federal vem reforçar este entendimento.
Trata-se da competência residual ou remanescente. É que, por força da tradição do regime federativo, adotou-se entre nós, como regra geral, a técnica de distribuição das competências legislativas em que as competências da União são expressas ou enumeradas (como forma de limitar a atuação da entidade que, tecnicamente, surge da associação das demais entidades) e as dos Estados-membros são residuais ou remanescentes, isto é, todas as matérias não previstas no elenco de competências legislativas explícitas e implícitas das demais entidades federadas pertencerão aos Estados-membros.
Portanto, adotando regra clássica do federalismo, a Constituição Federal de 1988 reservou aos Estados-membros todas as competências legislativas que não foram outorgadas, explícita ou implicitamente, às outras entidades federadas.
De fato, preceitua o § 1º do art. 25 da Carta Magna que:
“Art. 25. …………………………………………………………………………………..
§ 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”.
Estamos diante da competência legislativa residual ou remanescente dos Estados-membros, o que equivale a reconhecer que, com fundamento de validade no dispositivo constitucional retrocitado, essas ordens jurídicas periféricas poderão inovar a ordem jurídica, mediante a expedição de atos normativos infraconstitucionais, desde que a matéria a ser objeto de legislação não esteja no rol das competências reservadas à União e aos Municípios, tanto explícita quanto implicitamente.
Com base na competência residual, as Casas Legislativas Estaduais passam a estar dotadas da capacidade para criar todas as normas jurídicas relativas a temas que não estejam previstos na faixa de competências legislativas da União e dos Municípios. Isto é assim porque residual é adjetivo referente a resíduo, palavra derivada do latim “residuus”, que significa o que sobra, o que resta ou subsiste de algo.
Segue-se do considerado que à “União cabem apenas os poderes que, explícita ou implicitamente, a Constituição lhe reservou; aos Estados, tudo o mais. Diga-se melhor. Aos Estados cabem todos os demais poderes, exceto aqueles que a Constituição Federal confere, explícita ou implicitamente, à União e aos Municípios. Desse modo, a verdadeira significação do preceito em exame está em afirmar que tudo o que remanesce, extraída a competência da União e a dos Municípios, é da competência dos Estados. União e Municípios, portanto, não têm mais do que os poderes que lhes são, explícita ou implicitamente, atribuídos”.
Diante do que já sustentamos, podemos agora inferir, sem sinal de dúvida, que a faixa de competências legislativas dos Estados-membros acaba sendo demarcada por exclusão, mediante verdadeiro critério negativo de estabelecimento de competências, porquanto, COMO REGRA GERAL, poderão tais entidades legislar apenas sobre as matérias que não tiverem sido distribuídas, explícita ou implicitamente, pelo legislador constituinte, para União e Municípios, além de terem que ser respeitadas as vedações constitucionais limitadoras da atuação das pessoas políticas.
Eis aí, portanto, mais um forte motivo para referendar juridicamente a apresentação de Projeto de Emenda à Constituição Estadual para alterar o nome do Estado de Mato Grosso do Sul.
Não havendo na Constituição Federal, como de fato não há, absolutamente nenhuma referência à competência para alteração de nome das unidades federadas, fica claro que este tema pertence a cada uma das entidades citadas no seu art. 18 (União, Estados, Municípios e Distrito Federal). INEXISTINDO PREVISÃO SOBRE A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA QUANTO A ESTE ASSUNTO, CLARO DEVE RESTAR QUE SOMENTE O ESTADO-MEMBRO, VIA COMPETÊNCIA RESIDUAL, É QUE PODERÁ DELIBERAR SOBRE ESTE TEMA TÃO CLARAMENTE LIGADO AO INTERESSE DA COMUNIDADE ESTADUAL OU REGIONAL, SEM NENHUMA VINCULAÇÃO COM O INTERESSE DE UMA SÓ COMUNIDADE MUNICIPAL OU NACIONAL.
Competência dessa natureza nem poderia ser objeto de delegação. Quanto a isto prevalece a característica da INDELEGABILIDADE das competências legislativas, que redunda na conclusão de que o titular da competência legislativa não pode transferi-la, no todo ou em parte, a outrem. A impossibilidade da transferência da função legislativa é noção que se extrai de regras e princípios jurídicos previstos constitucionalmente, tais como o da separação de poderes, o da representação política, o da supremacia da Constituição e o do devido processo legal. A despeito disso, porém, e como única exceção, a Constituição Federal de 1988 traz regra explícita em que se permite a delegação da função legislativa da União para os Estados-membros, quando admite, no parágrafo único do art. 22, que lei complementar poderá autorizar os Estados-membros a legislar sobre matérias de competência privativa da União. O contrário jamais poderia ocorrer (por ausência da necessária previsão explícita), ou seja, o Estado-membro não poderia transferir competência legislativa que lhe pertence à União Federal, algo inviável juridicamente.
Interpretação como a exposta é mais consentânea com o regime federativo. Os Estados-membros não podem ser diminuídos ou ter um tratamento inferior ao que é dispensado às competências das demais entidades federadas. Federação, como sabemos, é união de coletividades autônomas. Para conferir autonomia aos Estados-membros, necessário será que se concedam às autoridades estaduais todas as competências necessárias para a autogestão de seus negócios e questões internas, sendo certo que uma das questões mais peculiares e inerentes a esta autonomia diz respeito exatamente à sua denominação.
CONCLUSÃO
Como restou exposto, entendemos ser viável juridicamente a apresentação de Projeto de Emenda à Constituição Estadual visando alterar o nome do Estado de Mato Grosso do Sul, sem a obrigatoriedade de realização de plebiscito (dado que isto não é exigido pelas Constituições Federal e Estadual ).